“Para um médico clínico, o importante é o paciente à sua frente. Para o diretor do hospital , o importante é a qualidade dos serviços e também a lista de espera que se acumula. Para o gerente, o pesadelo é como ajustar o orçamento à demanda saturada por serviços. Ninguém parece se importar com as necessidades não atendidas”. A análise é do chefe do departamento de Planejamento e Economia da Saúde da Escola Nacional de Saúde da Espanha (Instituto de Salud Carlos III), José Ramón Repullo Labrador, e foi “pinçada” da entrevista concedida por e-mail à pesquisa Região e Redes. Nela, o médico explica o método das necessidades de saúde comparadas que aplica em pesquisas de planejamento territorial. Grosso modo, a técnica consiste em pesquisar as comparações em instituições congêneres para um determinado território ou região. Mais detalhes a seguir.
Região e Redes – O senhor desenvolve pesquisas sobre planejamento territorial a partir do método das necessidades de saúde comparadas. Por favor, explique o que podemos entender por necessidades de saúde comparadas e qual a origem e importância desse método para o planejamento.
José Repullo – Existe uma variabilidade surpreendente na prática clínica, e também nos índices de utilização de serviços pela população. [O método] é uma produção de âmbito internacional e depende dos recursos disponíveis, que, por sua vez, dependem da capacidade econômica dos países e de sua eficiência tributária e fiscal, da decisão política de canalizar uma parte significativa de recursos para a atenção à saúde, das prioridades institucionais e técnicas definidoras da alocação e, ainda, das peculiaridades do sistema de contratosde instalações, serviços e profissionais.
Estudo de 2014, da Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), analisa a variabilidade de uma série de intervenções em 13 países ajustadas para que a idade não influencie na comparação. Por exemplo,a posição entre os países com maior e menor utilização resulta em uma variação de altas hospitalares (de até 2 vezes), procedimentos cardíacos (de até 3 vezes) e em artroplastia do joelho (de até 4 vezes). Porém, dentro de um mesmo país, estado ou região, também encontramos uma enorme variação que, frequentemente, supera a internacional.
É difícil, portanto, conceber e definir de forma operacional um conceito de necessidade. Em 1972, Jonathan Bradshaw publicou sua conhecida taxonomia da “necessidade sanitária”, ou necessidade normativa, como a definiam os profissionais e especialistas. Ou “necessidade sentida”, como a percebiam as pessoas. E ainda, “necessidade expressada”, quando a preocupação com a saúde levava os cidadãos a buscar assistência – incluindo tanto as pessoas atendidas como as postas em lista de espera ou as que desapareciam do sistema por problemas de acesso.
A necessidade comparativa de Bradshaw incorpora um conceito diferente: analisa os padrões de uso entre os diferentes territórios e populações. Assim, a oferta e a procura são identificadas e geram informações reais e mensuráveis. Seu caráter observável é a principal vantagem. O maior ponto fraco é a dificuldade de tirar conclusões válidas quando uma população utiliza mais os serviços do que outra. Ou seja, é difícil saber se o que ocorre é uma superutilização em um território, ou uma subutilização em outro. Ou ainda um uso indevido em ambos.
Em outras palavras, o método da necessidade comparada consiste em pesquisar as comparações ajustadas em instituições congêneres e com normas de saúde válidas para um determinado território ou região. Isso ainda não é o ideal, mas pelo menos, é útil para fazer avançar uma alocação de recursos incrementais mais racionais, eficientes e eficazes. Em suma, é uma ferramenta que fornece uma ordem de grandeza com a intenção de fazer pensar.
RR – O planejamento territorial do Sistema Nacional de Saúde espanhol é embasado pelas necessidades de saúde comparadas?
JR – Na realidade muito pouco. O habitual é que os sistemas de saúde sejam o resultado de um processo histórico de crescimento incremental, desorganizado e caótico, através de métodos de ajuste entre oferta e demanda em um contexto de inovação científica, tecnológica e de decisão política. Portanto, a racionalidade global é confusa e a implementação local sucumbe aos interesses políticos e particulares. É possível dizer, no entanto, que o desenvolvimento da saúde pública na Espanha tem alguma proximidade com o trabalho de planejamento baseado em necessidades definidas por especialistas e ajustadas por comparação. Essas tentativas foram aplicadas em algumas fases do desenvolvimento, e sua implementação local foi incompleta e, em algumas ocasiões, contraditória.
RR – Quais foram os entraves e como foram solucionados no processo de implantação do planejamento de necessidades de saúde comparadas?
JR – Talvez o melhor exemplo seja o Plano de Hospitais desenvolvido por meio da Seguridade Social da Espanha nas décadas de 1960 e 1970. Cerca de 52.000 leitos, mais de um terço do que temos hoje, foram construídos de acordo com critérios relativamente homogêneos. São os grandes hospitais regionais, chamados de “Cidades de Saúde”. Esses hospitais podem ter mais de 1.000 leitos (hospitais gerais) ou entre 500 e 1000 leitos (“Casas de Saúde”). Nosso sistema também conta com uma rede de hospitais menores e complementares (provincial e distrital). A concepção e o planejamento do sistema são sincronizados para estimular um trabalho de forma coordenada e sistemática.
Outro exemplo são os ambulatórios de especialidades cuja disponibilidade de consultas e médicos de diferentes especialidades está orientada conforme a necessidade da população, em função do número de médicos gerais por pacientes.
Em sentido estrito, os padrões e proporções definidos por especialistas não são um exemplo puro de necessidade comparada, ainda que se busque homogeneizar a distribuição de recursos para diferentes populações. Eles são inspirados na redução da variabilidade da dotação de recursos e serviços entre as populações.
RR – Quais as dificuldades para a adoção deste método?
JR – Bem, as dificuldades são as de tentar aplicar qualquer método racional a uma realidade complexa e dinâmica, onde existem múltiplos agentes com interesses econômicos próprios, com poder e influência que tentam fazer prevalecer suas agendas.
Nos anos 1980 houve muita contrariedade em relação ao enfoque racionalista de planificação que veio da saúde pública, inspirado em Donabedian, e que se difundiu graças a escola canadense de (Raynald) Pineault(autor do livro La Planification de la Santé: Concepts, Méthodes, Stratégies, de 1990)
O enfoque de saúde comunitária buscava extrair das análises de morbimortalidade a quantidade de serviços necessários para reduzir a carga de enfermidades e calcular sobre esta base os recursos para alavancar os serviços necessários. Essa ideia atrativa e impecável se chocava com a dificuldade de se conseguir informações e conhecimento para fazer os cálculos. E, pior ainda, enfrentava um insólito fenômeno de causalidade inversa: a oferta induz a demanda e os recursos fazem cristalizar em seu entorno demandas por serviços que previamente não existiam, ou não se evidenciavam.
A chamada “supply induced demand” foi demonstrada pela primeira vez noartigo de Wennberge Gittelsohn, de 1973, na revista Science. Concluiu-se pela necessidade de medir dados populacionais de utilização desde pequenas áreas a fim de conter o aumento de recursos hospitalares baseado nas pressões das instituições sobre a base de seus próprios dados de utilização.
Há um paradoxo aqui. Os países e sistemas com um marco de planificação mais centralizado podem usar fórmulas de alocação de recursos que garantem maior homogeneidade e coerência da rede. O problema inerente é o desajuste à necessidade e preferências locais. Já aqueles que possuem um marco político mais descentralizado, ou apresentam segmentação e fragmentação de suas redes, ou prestação de garantias,tendem a uma heterogeneidade maior e consolidam as diferenças como se fossem necessidades, demandas e preferências locais. De certa forma, a participação local é um vetor divergente da coerência técnica nacional ou regional. Somar esses vetores obriga a constituição de marcos e de mudanças institucionais amplas com mecanismos de participação do conjunto do sistema no governo.
Desde janeiro de 2002, o Sistema Nacional de Saúde espanhol passou a ser administrado através da divisão do país em 17 regiões denominadas Comunidades Autônomas. Promoveu-se uma grande ampliação da rede sanitária, mas permaneceu a divergência entre modelos assistenciais e prioridades. Por último, acordamos a descentralização para que o sistema se adaptasse ao local, mesmo reconhecendo perda de homogeneidade global. O que não está claro ainda é se essa divergência atende às necessidades, demandas e preferências da população, ou se está distorcida por lobbies políticos e profissionais locais que impõem suas visões ao conjunto, aproveitando sua enorme capacidade de influência local.
RR – Como ocorre o monitoramento e a avaliação no método de planejamento a partir das necessidades de saúde comparadas?
JR – Uma vantagem deste método é a transparência. Ao construir-se de forma explícita, o modelo pode ser facilmente medido e monitorado. Imagine reunirmos todos os dados hospitalares do Brasil como se só houvesse um único hospital. Calculamos o número de altas anuais por grandes grupos de idade – 0 a 1 ano, crianças até 14 anos, jovens e adultos, maiores de 65 anos e maiores de 75 anos. Aplicamos esses dados a um município, região ou estado e, assim, calculamos qual o número de altas hospitalares em uma dada população que seguisse o padrão global do Brasil. Inclusive poderíamos calcular os índices médios de leitos, médicos, enfermeiros, empregados ou recursos de qualquer tipo em relação ao número de altas. Também poderíamos pelo mesmo método saber qual o número de urgências, consultas, radiografias, análises etc. A nós caberia esperar que o pequeno território se comportasse como o grande território.
Quando reconstruímos a realidade local sobre os padrões nacionais, evidenciamos diferenças. Algumas justificadas, outras nem tanto. Por isso dizemos que este método ajuda porque incita a uma reflexão crítica e facilita um primeiro cálculo da ordem de magnitude da variabilidade.
Obviamente, se o conjunto de recursos de um país é escasso ou se a média é baixa, então, a comparação interna nos servirá para encontrar os lugares com as piores dotações, mas não para identificar todas as necessidades.
Ao longo do tempo, este método pode servir para identificar se as variações entre estados, entre populações urbanas, suburbanas e do interior se reduzem etc. Quero enfatizar que buscamos comparar a atenção recebida pela população e não a atenção prestada em cada hospital. A frequência populacional inclui tanto a utilização do hospital local como a referência e os encaminhamentos aos centros fora do território. Isto é o que torna comparação inteligente e válida.
RR– Os profissionais da saúde e os gestores do sistema são formados para planejar com base nas necessidades de saúde?
JR – Lamentavelmente muito pouco. A cultura dominante na clínica e da vigilância sanitária mantém um olhar dos muros do hospital para dentro. Para um médico clínico, o importante é o paciente que tem a sua frente. Para um diretor, o importante é a qualidade dos serviços e também a lista de espera que se acumula. Para um gerente de hospital, o pesadelo é como ajustar o orçamento à demanda saturada por serviços. Ninguém parece querer identificar as necessidade não atendidas.
Por isso, há cada vez mais propostas de aportes adicionais. E que esses aportes financeiros dos hospitais se refiram a populações, que se ajustem incentivos e bônus por resultados, e que os indicadores sejam cada vez mais populacionais. Em vez de dar bonificação por atividades, que se comece a penalizar o uso inapropriado dos serviços e a priorizar o bom trabalho clínico no hospital e na comunidade. Devemos pagar por crianças com crise asmáticas ou comas diabéticos? Estes são fracassos do trabalho clínico na atenção básica e nas consultas externas ao hospital.
RR – Quais países adotaram o método das necessidades de saúde comparadas no planejamento de seus sistemas de saúde?
JR – Como expliquei, mais que a aplicação do método, o que cresce é a necessidade de relacionar população e hospital. Tanto nos orçamentos como na medição dos desempenhos e resultados.O “commissioning” britânico ou a gestão contratual nórdica têm claramente esse significado. Mas é preciso compreender que se trata de serviços de saúde integrados, onde há apenas um sistema para toda a população. E a rede hospitalar está incorporada ao sistema ainda que com diferentes modelos de organização.
A pergunta é se a segmentação e a fragmentação do Brasil permitirão incorporar um planejamento populacional. Creio que no médio prazo só será possível se a rede sanitária tiver uma expansão clara e com um modelo coerente e tecnicamente consistente. Um estudo de necessidade comparada e o ajuste de alguns parâmetros de planejamento populacional permitiriam identificar as principais lacunas de cobertura. A partir daí é possível orientar tanto o planejamento de investimento financeiro como a gestão contratual com os atuais hospitais e provedores de serviços para estabelecer objetivos de atividade, qualidade e desempenho.
RR – Quais os desafios de se conduzir o planejamento pelo método das necessidades de saúde em situações de escassez de recursos e crescente influência dos interesses privados nas políticas e nos sistemas universais de saúde?
JR – Nenhum método de planejamento ou gestão consegue resolver problemas de escassez de recursos, ainda que a falta de método possa agravar esse problema. Devemos diferenciar a sustentabilidade externa (políticos que desejam um bom sistema de saúde e autoridades econômicas que obtêm e asseguram mais recursos) da sustentabilidade interna (gestores que organizam bem o trabalho e médicos que fazem uma prática assistencial efetiva, coordenada e austera).
Ao falarmos de sustentabilidade interna tenho que dizer que a busca pelo lucro distorce a conduta de hospitais e médicos, embora os modelos administrativos e burocráticos bloqueiem o funcionamento de organizações profissionais. Creio que se precisa de um modelo mais técnico de governo e de gestão dos sistemas e serviços de saúde, com menos interferência política, burocrática e comercial.
Ao falarmos de transformar hospital em modelo de organização profissional para que seja eficiente, é preciso fidelizar os profissionais e facilitar os meios para que só pensem em seus pacientes e em sua população. Creio que boa parte da revolução necessária na saúde tem a ver com organização, governo e gestão dos centros e serviços, mais do que com o componente do crescimento dos recursos que, sendo condição necessária, não é suficiente.
RR – De acordo com a sua experiência, como o processo de regionalização dos serviços de saúde no Brasil deve ocorrer: em partes devido aos seus diferentes níveis de atenção, ou todos juntos?
JR – Todos juntos. Falamos de um sistema complexo que se cresce desproporcionalmente em uma dimensão acaba alterando o conjunto. Por exemplo, se fortalecemos a atenção básica, esta encontra morbidades inibidas (cânceres, insuficiências renais, cardiopatias…) que exigirão dos hospitais aumento de capacidade. Assim tem ocorrido em vários países latino-americanos. Daí vem o grande interesse por se renovar as redes hospitalares.
Outro problema é o da tendência da sanidade moderna que leva a uma crescente integração e interdependência dos serviços e dos níveis assistenciais, desde a alta especialização até a atenção básica e os serviços sociossanitários. Isso nos leva a questionar a dependência aos vários níveis de governos. Por exemplo, a atenção primária ou básica é municipal e os hospitais são estaduais. Supõe-se a existência de barreiras políticas, institucionais e de gestão difíceis de superar se a interdependência for muito alta. Talvez uma boa ideia fosse refletir sobre esta múltipla dependênciade níveis políticos e institucionais, que, com o passar dos anos, será cada vez mais distorcida.
RR – Considerando a complexidade das sociedades pós-modernas, como conciliar no processo de planejamento a diversidade de valores e desejos dos distintos grupos sociais, de modo que tal processo tenha legitimidade?
JR – Excelente questão! Creio que se trata de diferenciar entre o que e o como. Existem dois polos em tensão: os cidadãos enquanto contribuintes (e seus representantes políticos) que consideram que há muitos impostos e buscam pagar o menos possível; os pacientes e as autoridades sanitárias ou locais que são essencialmente receptores de serviços e consideram que recebem muito pouco. No meio estão os planejadores, os gestores e também os profissionais mais conscientes da insuficiência dos meios para as enormes necessidades sociais.
Creio que a ação social deve centrar-se em enunciar suas expectativas e reivindicações e orientar os objetivos do sistema em nível nacional e local. Mas o como fazer excede habitualmente sua capacidade, e com frequência expressa a manipulação a que é submetida por grupos de interesse (comercial ou clínico) que exercem pressão a favor de uma tecnologia, serviço ou recurso.
A legitimidade é essencial, mas deve ser assegurada com a participação comprometida e estável nos órgãos de governoe nas instituições. Também é preciso garantir que a comunidade esteja sendo representada por pessoas de integridade e competências necessárias para assumir a função essencial de controle social.
Regiões e Redes, 05/11/2014