Pela radicalização da democracia

“A construção de uma visão nacional sobre o futuro que queremos só poderá ser feita a partir da radicalização da democracia e da ampliação dos meios de participação social”. A avaliação é da economista Mayra Juruá de Oliveira, assessora do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), que em julho participou do seminário “Iniciativas em Prospecção Estratégica Governamental no Brasil”, promovido pela rede Brasil Saúde Amanhã, na Fiocruz. Nesta entrevista, a pesquisadora apresenta metodologias aplicadas em estudos prospectivos de futuro e comenta os impasses enfrentados pelas iniciativas que buscam instrumentalizar políticas públicas, especialmente na área de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. “Um dos maiores desafios é convergir o timing da visão de futuro, que é de longo prazo e requer caminhos complexos, com o do tomador de decisão, que é pragmático por natureza”, aponta.

Qual a importância dos estudos prospectivos de futuro para o direcionamento da agenda nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação no sentido do desenvolvimento social?

Estudos de futuro são importantes em todos os processos de planejamento – seja para o desenvolvimento nacional ou para a tomada de decisão em empresas. No Brasil, a abordagem é particularmente relevante no campo das políticas públicas, uma vez que o país ainda está em fase de desenvolvimento e, como tal, apresenta uma agenda reprimida de demandas sociais e de limitações históricas que precisam ser superadas. Por outro lado, temos uma capacidade de investimento bastante reduzida. Então, a escolha das prioridades e das apostas que serão feitas deve ser muito bem pensada.

No caso da Ciência, Tecnologia e Inovação, isso é ainda mais marcante, pois os investimentos são altos e de longo prazo. E, para que as escolhas feitas sejam as melhores possíveis, é fundamental enxergar mais longe no horizonte temporal. Nos campos da biotecnologia ou do desenvolvimento de fármacos, por exemplo, a tomada de decisão é muito delicada. Uma má avaliação pode levar à alocação de recursos em uma pesquisa com poucas chances de sucesso, porque outros países saíram na frente. Além de não alcançar o resultado esperado, ainda há o risco de perder a oportunidade de investir em outra área, na qual se poderia ter sucesso, por não ter havido uma visão de futuro que auxiliasse na tomada de decisão no presente.

Quais os principais estudos de futuro realizados pelo CGEE?

 São 15 anos de atividade e mais de 400 projetos. Um estudo emblemático foi o realizado em parceria com a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), que desenhou agendas tecnológicas setoriais. A iniciativa, que começou com o desenvolvimento de panoramas sobre setores industriais, evoluiu ao longo dos anos e buscou apontar as apostas mais relevantes para o setor, permitindo que as empresas se preparassem para a incorporação de novas tecnologias ou processos. O resultado é um produto final palpável, concreto, que ganhou vida própria, uma vez que a ABDI continua desenvolvendo e aprofundando o estudo, mantendo toda a rede de colaboração que foi ativada nesta experiência.

Também destaco o estudo sobre economia verde, que se originou de uma percepção nascente alguns anos antes da Rio+20. Notamos que, naquele momento, a temática estava se tornando mais forte que a própria discussão sobre desenvolvimento sustentável. Em articulação com dois parceiros internacionais, o CGEE realizou uma consulta estruturada sobre os dois conceitos e as visões de desenvolvimento relacionadas a eles. Buscarmos entender as suas divergências e convergências. O Itamaraty se aproximou, percebendo que o tema ganharia relevância durante a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável e que o embate internacional sobre as tecnologias limpas teria grande implicação para as empresas nacionais. Portanto, o estudo foi útil para o Itamaraty subsidiar a posição brasileira no evento. Apresentamos os resultados nas sessões paralelas e pudemos ver uma divergência de posição entre os países do Norte e os países em desenvolvimento.

Quais as tendências futuras para a qualidade de vida nas grandes cidades e quais as políticas públicas necessárias para a construção das “cidades do futuro”?

A cidade inteligente, do futuro, é calcada nos três pilares do desenvolvimento sustentável: o social, o econômico e o ambiental. Deve, ainda, ser inclusiva e respeitar a natureza. Por isso, os desafios para as nossas cidades são enormes. Inercialmente, mantendo-se tudo como está, chegaríamos ao caos. Para dar um exemplo, os sistemas de esgoto não estão preparados para a elevação dos níveis do mar e para eventos extremos – cenário que tem efeitos alarmantes para a saúde humana, devido às muitas endemias que podem se espalhar caso o problema do saneamento básico não seja resolvido. Há, ainda, a questão da injustiça ambiental: os países em desenvolvimento são mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas porque suas infraestruturas básicas são precárias, ou ao menos incompletas, e as suas capacidades de adaptação, limitadas.

Quando falamos de cidades do futuro, é comum pensar imediatamente nas tecnologias da informação e da comunicação. Certamente este é um eixo central, uma tendência que não tem volta. Mas o grande desafio para países como o Brasil está no investimento em infraestrutura pública, nos novos formatos de organização das cidades, na oferta de serviços públicos de qualidade. Hoje, há uma demanda irreversível nas grandes cidades por melhor qualidade de vida e serviços públicos decentes. E ela tende a se intensificar no futuro, uma vez que o processo crescente e veloz de urbanização não será revertido, ao contrário, irá se aprofundar.

 Como é possível realizar estudos de futuro?

Há muitas metodologias. Normalmente, investimos inicialmente num detalhamento da demanda original, avaliando quais os esforços possíveis e desejáveis para chegar no resultado almejado. Em seguida, é sempre importante ter o diagnóstico do presente e suas principais tendências, para em seguida fazer uma exploração das alternativas de futuro, buscando definir onde queremos chegar e quais atores precisamos articular para isso.. Mas não há receita de bolo. Cada problema, cada estudo, cada questão levantada precisa ser tratada de forma individualizada. A meta é chegar a um programa de governo, a uma política pública? Ou a uma diretriz setorial? Isso faz toda a diferença. Não se trata de prever o futuro, mas de abrir um leque de eventos possíveis, para que o estudo oriente cada passo e permita um caminhar mais seguro. Com o passar do tempo, o futuro antevisto vai se tornando mais nítido.

No CGEE desenvolvemos e usamos diversos processos e  ferramentas que apoiam e facilitam tanto o diagnóstico do presente como a exploração de futuros possíveis. Por exemplo, para mapear competências sobre determinado tema, em vez de realizar uma pesquisa clássica no Google e na plataforma Lattes, contamos com um sistema automatizado que busca similaridades semânticas entre currículos e identifica redes de colaboração entre pesquisadores com muito mais agilidade e eficiência. Outra ferramenta que utilizamos bastante para levantar percepções de especialistas e outros atores relevantes são as consultas eletrônicas estruturadas. Automatizadas, economizam o tempo gasto com a tabulação das respostas e permitem ao respondente realizar o questionários em dias diferentes. A interação com atores e tomadores de decisão costuma, ainda, ser feita em reuniões de especialistas ou oficinas de trabalho específicas.

Quais os desafios desta abordagem?

Um dos maiores desafios é convergir o timing da visão de futuro e do planejamento de longo prazo, que possuem naturalmente caminhos complexos, com o do tomador de decisão, que é pragmático por natureza. Essa questão é especialmente relevante no ambiente público. O tempo político é curto e, neste caso, o desafio é ajudar o tomador de decisão na priorização das iniciativas e políticas a serem implementadas de forma a viabilizar o encontro entre o curto e longo prazo. A incorporação dos exercícios de futuro na sociedade de maneira geral – ou pelo menos em torno do governo e demais tomadores de decisão – é extremamente relevante e mesmo urgente. No entanto, historicamente agendas nacionais de longo prazo e os projetos nacionais de desenvolvimento tendem a ser construídas apenas pela cúpula dirigente pela burocracia ou, o que é pior, pelos interesses dos grandes grupos hegemônicos.

Espero que o exercício de prospectiva estratégica possa se democratizar e, com isso, redimensionar e potencializar a discussão sobre o projeto de desenvolvimento nacional. A construção de uma visão nacional legítima sobre o futuro que queremos só poderá ser feita a partir da radicalização da democracia e da ampliação dos meios de participação social. Essa ampliação vinha sendo feito nos últimos governos, a partir dos conselhos e das grandes  conferências nacionais como Educação e Cultura, por exemplo. Mas infelizmente essa tendência encontra-se, neste momento, ameaçada.

Renata Leite
Saúde Amanhã
29/08/2016