JOSÉ GOMES TEMPORÃO | Diretor-executivo do Isags
A atual política de ampliação do acesso a medicamentos, que tem por trás o incentivo ao Complexo Industrial da Saúde para fornecimento a preços equilibrados, vem em uma trajetória crescente. Mais de uma centena de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) foram consolidadas, com produtos já fornecidos para o Sistema Único de Saúde (SUS). Porém, para ampliar ainda mais o rol de medicamentos incluídos na internalização da produção, falta o Ministério da Saúde conseguir maior orçamento disponível e sem sofrer contingenciamento. Trata-se de uma questão de vontade política. O ex-ministro da Saúde e diretor-executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), José Gomes Temporão, faz um balanço da atual estratégia de saúde e analisa sua possível continuidade após as eleições. Para ele, não há “qualquer força que se coloque claramente contra” a política em andamento.
O Ministério da Saúde já chegou à marca de mais de 100 PDPs. Como o senhor avalia a evolução dessa política?
De um lado, ainda persiste uma visão limitada de setores importantes da sociedade brasileira de que o setor saúde impacta apenas os gastos governamentais e os custos das famílias. Essa visão ainda é hegemônica e não percebe que a saúde tem uma dimensão muito mais importante, seja do ponto de vista de uma política fundamental para o desenvolvimento humano, seja para as condições de vida da população brasileira, mas também para uma dimensão econômica de inovação e desenvolvimento. Aí está o grande avanço dos últimos anos, garantindo ao mesmo tempo a base produtiva e tecnológica para que o setor saúde possa funcionar adequadamente.
É exatamente o contrário do que a Índia e a China estão fazendo: construíram uma infraestrutura produtiva importante, mas não há qualquer relação entre a política industrial e a de saúde. Ou seja, não tem sentido investir numa política de assistência sem ter essa visão do conjunto de tecnologias necessárias para garantir o direito à saúde.
Não tenho dúvida de que estamos num patamar diferenciado. Mas não sei se podemos dizer com tranquilidade que já temos uma política de Estado e não de governo, porque para ter uma política de Estado é preciso consolidar dimensões como a questão da avaliação tecnológica, a gestão de tecnologias, uma integração maior com a Anvisa.
O senhor acredita que, mesmo com uma mudança de governo, a política de incentivo à indústria da saúde será continuada?
Minha perspectiva é que sim. Não percebo qualquer força política que se coloque claramente contra isso, embora possa haver visões distintas, porque na verdade a discussão remete a outro debate, que é o tipo de desenvolvimento econômicoque queremos para o Brasil. Queremos que o Brasil continue centrado na produção de commodities, de alimentos, de produtos de baixo valor agregadopara exportação, ou queremos transformar o Brasil numa potência industrial, num país com grau de desenvolvimento diferenciado que se insira de maneira inovadora na economia internacional? Acho que esta última é a visão que desejamos.
Então, sou razoavelmente otimista no sentido de termos uma continuidade dessa política, até porque ela já chegou ao Ministério da Indústria e Comércio e ao BNDES, sendo o Ministério da Saúde uma liderança importante nesse processo.
A política de saúde brasileira é modelo para outro país?
Não diria modelo, porque França, Inglaterra e outros países fizeram isso no passado. Mas essa nova política passa a ser vista com curiosidade e com atenção. Por exemplo, há um grande espaço de trabalhar essa visão brasileira na América Latina. No Isags, estamos colocando esse tema em pauta. Recentemente, o conselho de ministros da saúde dos 12 países da América do Sul colocou que um dos temas mais preocupantes é o preço e o acesso a medicamentos. Então há um grande espaço para que o Brasil possa aparecer como liderança.
Considerando essa evolução, como o senhor vê os setores farmacêutico e farmoquímico nacionais hoje?
O setor farmacêutico, comparado ao desempenho de outros segmentos da indústria de transformação, é o que tem tido um dos melhores resultados. A ampliação do acesso vem sendo puxada por políticas como a da Farmácia Popular, mas avalio que ainda temos um longo caminho a percorrer, principalmente entre as famílias de mais baixa renda.
Uma das principais limitações é o financiamento do setor saúde. Se você olhar o conjunto de medicamentos que o “Aqui Tem Farmácia Popular” entrega hoje, ainda é um grupo muito limitado. O ideal seria que esse elenco de medicamentos pudesse ser ampliado significativamente para outras classes terapêuticas de amplo uso pela população brasileira.
No caso do setor farmoquímico, o mais importante foram as PDPs, que criaram um processo de reversão, ou seja, uma indústria que praticamente foi destruída nos anos 90, no governo Collor e depois no governo Fernando Henrique Cardoso, pela primeira vez ganha um novo fôlego. Reduzimos a velocidade de importação de insumos e começamos a internalizar pela primeira vez em décadas a produção de princípios ativos no Brasil, praticamente todos eles alavancados pela política de genéricos, ou por programas importantes do governo como o DST/Aids, ou pelas PDPs. A própria ABIFINA, que é uma liderança nessa luta de fortalecimento de uma indústria de base nacional, compreende que houve avanço, embora ainda exista muito por avançar.
Onde é preciso avançar no financiamento, uma vez que as agências de fomento já ampliaram seus recursos, especialmente o BNDES, com o Profarma?
O que impede que a lista de medicamentos subsidiados ou distribuídos gratuitamente cresça? Simplesmente o orçamento do Ministério da Saúde. Estou me referindo basicamente a essa restrição, e não à disponibilidade de recursos para a política industrial pelo BNDES, Finep ou CNPq, embora também seja importante aumentar esses recursos. Falta capacidade do orçamento do Ministério para alavancar o mercado através do poder de compra do próprio Ministério. Sem superar esse problema, vamos continuar com medidas tímidas: positivas sem dúvida, mas limitadas na sua capacidade, no seu potencial de transformar realidades.
Seria um problema majoritariamente de vontade política? A cobrança da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), por exemplo, não contribuiu para a melhoria do sistema de saúde como esperado.
Tivemos a CPMF e recentemente conseguimos uma emenda com 2,5 milhões de assinaturas, garantindo 10% das receitas da União para financiamento da saúde, mas o Congresso não a aprecia. Ou seja: sim, esse problema depende de grande vontade política.
E ainda existe o risco de a receita acabar atendendo ao contingenciamento feito pelo governo.
Exatamente. A educação já conseguiu se livrar desse contingenciamento, a saúde ainda não. Entra aí uma questão que é a falta de visão da sociedade brasileira sobre a importância de se ter um sistema universal e de qualidade em um país em desenvolvimento como o Brasil. Uma visão que é muito clara, por exemplo, no Canadá, na Inglaterra, onde a sociedade defende de maneira muito forte o sistema universal, porque percebe nesse sistema um patrimônio construído por gerações. No Brasil, há uma visão fragmentada e ilusória de que o mercado privado vai resolver a questão da saúde.
Como avalia o licenciamento do Efavirenz depois de seis anos?
O licenciamento compulsório interferiu positivamente no próprio desenho das PDPs e do Complexo Industrial da Saúde. Aconteceu em abril de 2007, um mês após eu ter assumido o Ministério da Saúde. A partir dali toda essa questão ganhou força, porque o licenciamento compulsório do Efavirenz exigiu uma parceria entre um laboratório público, Farmanguinhos, e farmoquímicas nacionais, que trabalharam de maneira conjunta e articulada para podermos ter autonomia completa em todo o ciclo produtivo desse medicamento. Foi uma medida corajosa do presidente Lula, com repercussão mundial: pela primeira vez um país da dimensão do Brasil usou as flexibilidades do Acordo TRIPS. Foi realmente um marco.
Há espaço hoje para outros licenciamentos?
Naquela época, havia muitas vezes queda-de-braço entre o governo e a indústria na questão do preço. Hoje, a partir da política das PDPs, temos outra estratégia de ampliação do acesso, acrescentando ao País tecnologia, conhecimento e capacidade produtiva. Mas isso não quer dizer que o licenciamento compulsório como instrumento de garantia do acesso não continue tendo seu espaço e seu papel. Por exemplo, se olharmos hoje para a questão de medicamentos para tratamento de câncer de alto custo, e de outras patologias, ele continua sendo um instrumento importante. Não vejo porque não utilizá-lo caso seja necessário.
As doenças negligenciadas poderiam estar nesse caso?
Sim. Mas o licenciamento deve ser usado em situações muito específicas.
Como conciliar o crescimento dos genéricos com a inovação?
Nos mercados americano e inglês, a participação dos genéricos é de 40 ou 50%. No Brasil, ainda está em 25% a 30%. Portanto, há espaço para crescimento, mas ele não pode se dar apenas através do processo de cópia, sem se tentar agregar inovações. Existem questões políticas e culturais que impedem o avanço da pesquisa e desenvolvimento, que está principalmente no espaço acadêmico. Como aproximá-lo do mundo da produção? Como aproximar indústria e universidade?
O Brasil hoje está em 13° lugar entre os países que mais publicam artigos em revistas indexadas internacionais de alta qualidade. Agora, quando você olha o número de patentes registradas pelo Brasil, é quase uma reta. Não é expressivo. Ou seja, o Brasil não está conseguindo transformar esse conhecimento acadêmico em produtos.
Não pesa aí a curva de aprendizagem, considerando um setor que estava quase se extinguindo?
Sim, é como se estivéssemos começando do zero. E há muita burocracia. Por exemplo, há uma gritaria dos pesquisadores quanto à dificuldade de ter acesso a insumos básicos para pesquisa por conta de uma série de barreiras burocráticas da Receita Federal, da Anvisa e de outros órgãos. Então, é um conjunto de medidas que tem que ser tomado.
Como analisa a entrada dos biológicos no mercado nacional?
É uma tendência inexorável. Quando você analisa a curva de introdução de novas drogas no mercado, essa curva despencou. Isso aponta que as rotas tecnológicas anteriores teriam esgotado sua capacidade de inovar. Os biológicos aparecem como a nova rota tecnológica, e é importante que o Brasil se prepare para isso. Destaco a importância do governo ter apoiado a criação de duas grandes empresas de biofármacos de capital nacional, envolvendo dez grandes empresas brasileiras, com o apoio do BNDES.
O Brasil também está fazendo parcerias importantes com Cuba nessa área. Os biológicos são medicamentos de altíssimo custo, que impactam profundamente o orçamento do Ministério da Saúde, e acho que não tem volta. É um novo espaço de crescimento e desenvolvimento de novas tecnologias para atender às necessidades da saúde do Brasil.
Portal Abifina