Um público expressivo foi ao Centro de Cultura e Eventos da Universidade Federal de Goiás, na noite dessa quarta-feira (30), para assistir ao primeiro Grande Debate do 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Com o tema Saúde da População Brasileira, a sessão reuniu Cesar Victora, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Jairnilson da Silva Paim, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e Madel Therezinha Luz, pesquisadora associada da Universidade Federal Fluminense (UFF). João Batista de Deus, professor da UFG, foi o mediador do debate.
Cesar Victora abriu os trabalhos com uma apresentação expositiva sobre a saúde das mães e das crianças brasileiras. Logo no início, ele fez menção ao artigo Indicadores de Saúde no Brasil: relações com variáveis econômicas e sociais, escrito pelo professor Paim em 1975. “Esse artigo me inspirou, Jairnilson. Quero te agradecer em público por ter me inspirado naquela época, mesmo sem me conhecer. Desde então, não parei mais de mexer em números em saúde, virei epidemiologista. Esse artigo teve um papel fundamental naquela fase precoce”, disse Victora que, ao fim de sua fala, abraçou seu mestre inspirador.
O epidemiologista trouxe uma grande quantidade de dados, tanto recolhidos ao longo de mais de 30 anos em seus estudos de coorte, quanto números oficiais do Ministério da Saúde. Em 1990, a mortalidade infantil no Brasil era de 50 por mil; já em 2013, era de 15 por mil. Essa redução é vista por Victora como um grande sucesso, tendo em vista que o objetivo de desenvolvimento do milênio era que o país alcançasse tal número em 2015. Quatro explicações para esse progresso são encontradas na série A Saúde dos Brasileiros, composta por seis artigos publicados na revista The Lancet, em 2011. Entretanto, Victora alertou que as conquistas duramente alcançadas estão ameaçadas por conta dos atuais cortes orçamentários do governo federal diante da crise econômica.
Apesar do progresso na redução da mortalidade infantil, o Brasil não atingiu a redução da mortalidade materna como proposta pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da ONU. “Estamos longe de atingir esta meta. É um desafio importante que ainda nos resta”, constatou. Ele também lamentou a inexistência, desde 2006, de um inquérito brasileiro sobre a saúde reprodutiva da mulher, da mãe e da criança.“Isso é inaceitável. Todos os países ao nosso redor têm inquérito a cada três, quatro anos, e nós paramos no tempo. Realmente é preciso que revitalizemos esses inquéritos e voltemos a fazê-los frequentemente, pois isso permite evidenciar dados muito importantes”, explicou Victora, que comentou também a relação entre o número de cesarianas e complicações tanto do recém-nascido quanto das gestantes, como a prematuridade e os índices de mortalidade materna, responsável por, pelo menos, 23% dos óbitos. “É uma agressão à mãe e ao recém-nascido, e tem consequência em longo prazo”.
+ Confira a apresentação de Cesar Victora
Outra relação que o debatedor estabeleceu foi entre as taxas de mortalidade materna e o aborto ilegal. “É uma questão de saúde pública. Não tem que ser lidado como uma questão religiosa”, defendeu. “É essencial que lidemos com isso. A estimativa que nós fizemos nessa série é que tem 1 milhão de abortos ilegais por ano no Brasil. A cada quatro gestações uma acaba em um aborto ilegal”. Outra razão para tão alta taxa é a falta da qualidade na atenção pré-natal e ao parto: “A prática da interação entre o pessoal de saúde e a população não se mede somente porque todo mundo faz parto hospitalar. O atendimento tem que ser de qualidade”, reforçou Victora, destacando também as diferenças étnicas e sociais entre as gestantes; o aumentos de doenças crônicas como diabetes, hipertensão e obesidade como fatores da persistência da alta mortalidade materna.
O professor apontou quatro desafios a serem enfrentados pelo Brasil quanto à saúde das mães e das crianças: mortalidade materna, prematuridade, cesarianas e obesidade infantil. No que diz respeito à saúde do brasileiro, ele também expôs quatro desafios: persistência das desigualdades socioeconômicas, étnicas e geográficas; práticas culturais; subfinanciamento do SUS, má qualidade da atenção; e os lobbies da indústria alimentícia e do setor privado da saúde, além do corporativismo médico e o conservadorismo de grupos religiosos.
Saúde da População: “Nesse momento em que estamos vivendo, Goiânia é um grande exemplo, porque foi aqui nessa cidade que surgiu o primeiro comício pelas Diretas Já”, iniciou sua fala Jairnilson da Silva Paim, agradecendo pela oportunidade de voltar à capital goiana. Sobre o tema escolhido para a palestra, Saúde da População Brasileira, Paim disse ter ele “um sentido político como um alerta pela escolha que foi realizada pelo Conselho Nacional de Saúde no sentido de que a 15ª Conferência trabalhe com o tema de saúde pública de qualidade como um direito do povo brasileiro”.
Paim explanou que os problemas do sistema de serviços de saúde envolvem determinantes políticos, econômicos e ideológicos. “As respostas a esses problemas podem ser entendidas como as políticas de saúde que atualmente contemplam um setor produtor de bens e de serviços e que não é um setor qualquer: é um locus de acumulação de capital. Portanto, diversos interesses vinculados ao capital se materializam nos âmbitos do sistema de saúde”.
+ Confira a apresentação de Jairnilson Paim
O professor da UFBA listou algumas das conquistas alcançadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos anos: melhora no acesso à atenção básica e de emergência, por meio do SAMU, cobertura universal de vacinação e de assistência pré-natal e forte investimento na expansão de recursos humanos e em tecnologias, com grande esforço para fabricar vacinas e medicamentos essenciais no país. Mesmo com bons indicadores, Paim lastimou a grave redução de verbas para o setor. Antes da implantação do SUS, em 1981, os recursos públicos financiaram 68% dos atendimentos e pagaram 75% das internações. Comparativamente, em 2008, os números foram reduzidos para 56% e 67%, respectivamente. Diante disso, Paim concluiu que “O Estado brasileiro, historicamente, estimulou o setor privado, promovendo a mercantilização da saúde”.
Em sua exposição ao público do Abrascão 2015, o pesquisador mostrou que cerca de 40% do gasto em saúde é público, número menor que nos Estados Unidos e México – países que não têm um sistema universal de saúde. A participação da União no financiamento do SUS caiu de 72%, em 1993, para 42,93%, em 2013. “São dados relativos. Os gastos do Ministério da Saúde quase que duplicaram, mas, quando se observa o percentual do PIB gasto pelo governo brasileiro, ele continua o mesmo. Ou seja, o país cresceu, porém, os investimentos em saúde, não.” Paim também explicitou que, “apesar da gritaria de empresários e do “impostômetro”, quem mais paga impostos no Brasil são os mais pobres – justamente os mais prejudicados no acesso e qualidade dos serviços públicos, inclusive no SUS”.
Sobre a suposta falta de recursos federais para a saúde, o palestrante justificou: “uma soma fabulosa do orçamento é apropriada pelo capital financeiro. Quase R$ 1 trilhão do orçamento da União executado em 2014 foi destinado ao pagamento da dívida pública, o que representa 45,11%, Para a saúde, coube apenas 3,98%”. Nesse contexto, Paim enumerou sete ameaças contra o SUS, a saber: rejeição da Emenda Popular Saúde + 10; abertura da saúde ao capital; orçamento impositivo; obrigatoriedade de planos de saúde para empregados; projeto de lei das terceirizações; reconhecimento da constitucionalidade das Organizações Sociais; e comprometimento do governo com a proposta de Cobertura Universal em Saúde.
“São esses sete golpes que se apresentam contra o SUS que quase nos colocam no 7 a 1”, brincou, referindo-se à derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2014. “E esse 1 nós temos que aproveitar bem: é o preparo e a construção da 15ª Conferência Nacional de Saúde. Não é um tema que nós preferíamos debater, mas é o que está aí. O que nós temos que defender na Conferência é um sistema público de saúde de qualidade, digno, abrangente, integral, universal, participativo e democrático”, concluiu.
Adoecimento coletivo: Madel Therezinha Luz, última palestrante do primeiro debate do Abrascão 2015, fez um recorte temporal à temática do adoecimento coletivo aos tempos de crise. “Esses tempos incluem não só o tempo brasileiro, mas também o do capitalismo internacional, de nossa vida coletiva e uma economia financeirizada e cujas crises abalam a nossa saúde”. Para Madel, o trabalho tem sido adoecedor. “A perda do poder aquisitivo é acompanhada pela aceleração do ritmo das atividades, que vem com a virtualização das informações e das tarefas e um aumento consecutivo da carga de trabalho sem nenhuma compensação, nem material, nem simbólica”.
O individualismo e a competição, valores dominantes na atualidade, repercutiram na perda dos vínculos sociais, o que tem levado ao isolamento e ao adoecimento, defendeu a palestrante. “Embora conectados, os seres humanos deste país se veem perdidos e sem iniciativa de participação civil coletiva, pois estar conectado não significar estar relacionado, nem que haja relação social.”
+ Confira a apresentação de Madel Luz
Tal cenário influencia diretamente na prática política. “Nós temos um decréscimo de valores de compromisso que está presente nos três poderes. Há uma fragilização da ética na política e isso influi também na saúde da população, porque ética e política são duas dimensões inseparáveis da vida social. São o verso e o reverso da mesma moeda”, definiu a professora. “Um adoecer social começa a se revelar. Ações coletivas de insegurança, desconfiança e agressividade mútua dos cidadãos são notadas cada vez mais nas grandes cidades”, salientou ela, destacando que problemas históricos – como discriminação de raça, gênero, crença, classe social e origem– e condutas cotidianas – como comer, trabalhar, dirigir – são agravados nos momentos de crise, dando condições para o surgimento de novas patologias e para o agravamento de adoecimentos.
A deterioração da ética tem causado a separação social, já que têm sido adotados valores sociais incompatíveis com a vida coletiva. “Estou achando que nós nos encaminhamos para uma sociedade desabitada de valores humanos, vazia do ponto de vista ético e que não se reconhece como um todo orgânico coletivo”, argumentou Madel, que concluiu sua participação com um elogio àqueles que lutam por valores de solidariedade, “uma vez que a sociedade capitalista apela ao máximo para a competição, individualismo e consumismo como uma forma de esquecimento do deserto em que se vive eticamente”.