A pandemia de Covid-19 tornou mais cristalinos do que nunca, especialmente nos países do Sul Global, os efeitos deletérios de décadas de privatização e de mercantilização na capacidade de resposta dos sistemas de saúde, na produção e reprodução de iniquidades e na exclusão do acesso a serviços de saúde. Se no passado diversas reformas neoliberais indicavam que a ampliação do papel do setor privado nos sistemas públicos de saúde era o caminho para maior eficiência, redução de custos e liberdade de escolha, hoje estas premissas são cada vez mais questionáveis. Mas isso não quer dizer que haja uma contramarcha em curso, ou que propostas alternativas tenham emergido com força suficiente para contrapor estes processos.
Diante desse cenário, no último dia 30, o Movimento Pela Saúde dos Povos (MSP) promoveu o seminário “Mercantilização e Privatização da Saúde: das lutas globais às lições locais”, com convidados e apresentações de casos de diversos países. Entre os objetivos, buscou-se apreender os diferentes sentidos e significados da privatização na saúde, as complexas e desequilibradas relações entre o público e o privado, os agentes e processos contemporâneos que impulsionam o avanço da mercantilização e as experiências locais de desprivatização e resistência popular.
Na abertura, o coordenador global do MSP, Román Veja, reconstituiu a trajetória de transformações nos sistemas de saúde no contexto neoliberal, destacando a concepção de Cobertura Universal de Saúde (CUS) da Organização Mundial de Saúde (OMS), o arcabouço conceitual, político e ideológico que sustenta as reformas pró-mercado. Para Vega, a CUS se apoia na despossessão de bens públicos através de diferentes formas de privatização, seja com a promoção de esquemas de asseguramento privados ou incentivo à provisão privada para o setor público, além de uma Atenção Primária seletiva.
Na Coreia do Sul, a ativista do MSP Sun Kim apontou que as reformas recentes no sistema, visando a CUS, promoveu zonas de exclusão de cobertura para segmentos da população entre o seguro nacional e o programa de assistência médica voltado para os mais pobres. Os governos vêm enfrentando dificuldade para expandir a cobertura, e grande maioria da população tem também seguros privados, persistindo uma série de iniquidades.
Ao analisar os efeitos da privatização durante a pandemia de Covid-19 na Índia, Abhey Shukla destacou os enormes custos para se obter internação em hospitais privados. Por exemplo, no estado de Chhattisgarh, 59% das internações resultaram em gastos catastróficos. Entrevistas com pacientes revelaram aspectos como a exploração deles, com a cobrança de grandes sobrepreços, o endividamento para pagar despesas hospitalares, a falta de transparência dos hospitais, a violação de direitos básicos e restrições de cobertura no caso dos seguros. Por trás desse cenário, a forte expansão dos hospitais privados na Índia nas últimas décadas, que foi fortemente impulsionada por políticas públicas e pelos capitais de corporações e investidores transnacionais.
Apesar do Sri Lanka ofertar saúde gratuita como um direito de cidadania desde meados do século XX, consolidou-se nos últimos 30 anos, por um lado, a falta de investimentos públicos no sistema público e, por outro, subsídios à expansão do setor privado. Conforme destacou Ramya Kumar, o resultado tem sido o sucateamento do setor público, sobrecarregando as famílias com altos gastos privados. A professora destacou ainda o perigo do discurso em torno da CUS, que estimula o financiamento público e mascara a proliferação da privatização, dando foco apenas à “cobertura” e à proteção do “risco financeiro”, em vez de privilegiar a provisão pública.
Leigh Haynes, do MSP da América do Norte, trouxe exemplos de como a privatização tem aprofundado iniquidades em saúde nos Estados Unidos e no Canadá, com maiores impactos em comunidades mais pobres, de migrantes e de grupos racializados. A ativista também destacou a atividade dos grandes grupos e fundos de investimentos, que têm se disseminado em distintos serviços de saúde em busca de baixo risco e retornos elevados. E em alguns casos há até mesmo lavagem de dinheiro e sonegação fiscal.
Ao analisar o caso brasileiro, Leonardo Mattos, membro do MSP Brasil e da Iniciativa Saúde Amanhã da Fiocruz, apontou que, mesmo com a construção de um sistema público e universal como o SUS, os mercados da saúde se desenvolveram fortemente e a privatização penetrou e se enraizou no sistema de saúde brasileiro de diferentes formas. Uma realidade que reproduziu uma série iniquidades de acesso, utilização, oferta de serviços, disponibilidade de profissionais e insumos. Também destacou a financeirização como um determinante estrutural que transforma progressivamente os sistemas de saúde contemporâneos em plataformas de valorização financeira, fenômeno que se consolida após a crise financeira de 2008 e se intensifica com a pandemia de Covid-19.
Por fim, Mario Hernández, da Colômbia, apresentou a experiência do país, tida como exemplo mundial pelos ideólogos das reformas de mercado. Nos anos 90, a Constituição do país definiu o papel regulador do Estado alinhado às diretrizes do Consenso de Washington. Na saúde, isso se materializou na visão de que o setor público deveria ampliar o acesso a serviços de saúde públicos e estimular e regular o setor privado, gerando um ambiente de competição. Na prática, representou o estabelecimento de uma lógica de privatização estrutural que foi capaz de impulsionar o país até a cobertura universal, mas com a constituição de um sistema de saúde fragmentado, ineficiente e desigual que discrimina e segrega os mais pobres. Hoje, após eleger um governo progressista, o país vive a expectativa de reformas que apontem para a criação de um sistema público e universal que reverta o quadro atual.
Para além dos diagnósticos desafiadores, todos os debatedores trouxeram experiências locais inspiradoras de resistência à privatização da saúde e possíveis caminhos de construção de políticas de saúde alternativas, incluindo a mobilização da sociedade civil. A construção de sistemas de saúde de acesso universal financiado pelo setor público sem o enfrentamento da privatização e sem a politização do modelo assistencial pode pressionar apenas para a direção da CUS. Para a construção de caminhos alternativos de justiça social, não bastam apenas pequenas mudanças institucionais ou políticas pontuais de governos progressistas. É necessário unir as resistências locais às lutas gerais de cada país e também no nível internacional, na busca por mudanças mais profundas e estruturais nos sistemas de saúde e na sociedade.
Por Leonardo Mattos
*Leonardo Mattos é sanitarista, professor da UFRJ e membro do Movimento pela Saúde dos Povos e da Iniciativa Saúde Amanhã da Fiocruz.