Em setembro de 2014, foi noticiado o primeiro caso de uma nova doença no país: a chikungunya. O nome significa aqueles que se dobram, em dialeto da Tanzânia, onde a doença surgiu, e refere-se a um de seus sintomas — dor intensa nas articulações, que pode impedir que a pessoa caminhe normalmente. De setembro a março deste ano, já se registraram 4 mil casos no Brasil, quase todos autóctones, isto é, fruto de contaminação dentro do país.
O vírus é transmitido pelo Aedes aegypti, vetor também do vírus causador da dengue, e os sintomas das duas doenças são parecidos. Para o infectologista Rivaldo Venâncio Cunha, diretor da Fiocruz Mato Grosso do Sul, melhor é que as autoridades sanitárias não relutem, como ocorreu com a dengue, em admitir a possibilidade de uma epidemia da doença, menos letal, mas de maior morbidade.
“Devemos esperar a progressiva ampliação da circulação do vírus chikungunya”, afirma nesta entrevista à Radis.Uma boa notícia é que pesquisadores do Instituto Carlos Chagas/Fiocruz Paraná isolaram o vírus, o que deverá acelerar pesquisas sobre seu mecanismo de ação e contribuir para a produção em larga escala de kits de diagnóstico para rápida detecção — e, portanto, tratamento — da nova doença. Ainda assim, Rivaldo alerta:“A chikungunya será mais um desses graves problemas que atingem diretamente o sistema de saúde, cuja origem e solução definitiva estão distantes da governabilidade dos gestores e profissionais do setor”.
Que balanço é possível fazer do verão de 2015, quanto à chikungunya e à dengue no Brasil?
São duas situações distintas: de um lado temos a dengue, que vem sendo registrada de forma quase ininterrupta há cerca de 30 anos, e, de outro, uma nova enfermidade. Em relação à dengue, sua ocorrência cresceu substancialmente nos primeiros meses do ano, com aumento de 130% no número de casos registrados. A crise no abastecimento de água para uso doméstico, principalmente na região Sudeste, sugere um cenário preocupante para os próximos meses, já que o armazenamento em recipientes improvisados contribui de forma marcante para a geração de focos do Aedes aegypti. Quando comparamos o verão de 2015 com o de 2010, por exemplo, observamos que os números atuais são relativamente menores, o que não significa dizer que a situação esteja sob controle.
E a chikungunya?
A chikungunya tem disseminação mais lenta no Brasil do que a verificada em outros países, e ainda não é possível saber quais as razões para essa lentidão na dispersão do vírus. De setembro de 2014 até a primeira semana de março de 2015, tivemos 4 mil casos notificados, oriundos principalmente do Amapá e da Bahia. Há registros também em Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Roraima e no Distrito Federal. Como parâmetro de comparação, em pouco mais de um ano, desde a introdução do vírus nas Américas, foram registrados mais de 1,2 milhão de casos autóctones de chikungunya, em cerca de 40 países. Em alguns, como Martinica, São Bartolomeu e San Martin, no Caribe, a prevalência alcançou cifras alarmantes de até 20 mil casos para cada grupo de 100 mil. Algumas hipóteses sugerem que nossos índices de infestação domiciliar pelo Aedes seriam mais baixos que os verificados no Caribe, por exemplo; outras tentativas de interpretação sugerem diferenças nas linhagens das cepas virais circulantes no país, ou até mesmo uma competição de dois vírus (dengue e chikungunya) por um mesmo transmissor. Quaisquer que sejam as explicações, o fato é que há condições epidemiológicas para que a doença passe a ser registrada de forma epidêmica em vários estados da federação, respeitadas as particularidades climáticas das diferentes regiões.
Podemos esperar uma epidemia, então? Há um ambiente propício no Brasil à proliferação da chikungunya?
Infelizmente sim. Acredito que devemos esperar a progressiva ampliação da circulação do vírus para muitas outras localidades. Não creio ser possível estabelecer com exatidão a velocidade dessa dispersão, razão pela qual é recomendável que estejamos preparados para o pior cenário. Se ele não ocorrer, melhor para todos. Há um ambiente muito propício à ocorrência de chikungunya no país. Aqui estão presentes as condições climáticas e sociais favoráveis à proliferação dos transmissores do vírus: elevadas temperaturas ambientais e chuvas em abundância, além de graves deficiências na coleta dos resíduos sólidos urbanos e irregularidade no abastecimento de água para uso doméstico. Cabe destacar o fato de a chikungunya ser uma doença de introdução recente no país, o que significa que a quase totalidade da população não possui anticorpos contra o vírus.
Já temos dengue no país há várias décadas, o que levou ao surgimento da chikungunya exatamente agora?
Desde 2004 tem se intensificado a circulação do vírus chikungunya no mundo, com epidemias de grandes proporções em ilhas do Oceano Índico, na Índia e em países do Sudeste Asiático. Há vários anos têm sido diagnosticados casos importados da doença nos Estados Unidos e em países do Caribe; em 2013, foram identificados os primeiros casos autóctones em San Martin, atingindo, em poucas semanas, diversos países das Américas. Acredita-se que a introdução do vírus no Oiapoque (AP), pode ter acontecido por meio de pessoas que transitavam ali na fronteira entre Brasil e Guiana Francesa. A investigação epidemiológica realizada em Feira de Santana, que procurou mapear o trajeto dos primeiros casos ocorridos na cidade, sugere outra rota de introdução do vírus na Bahia, sendo que o provável caso índice pode ter vindo do continente africano.
Como avalia o cenário de infestação no país do mosquito Aedes aegypti (medido pelo LIRAa – Levantamento do Índice Rápido de Infestação do Aedes aegypti), vetor das duas doenças?
O cenário é muito preocupante, pois nem sempre os índices expressam a realidade de forma fidedigna. Costumamos interpretá-los de maneira equivocada, esquecendo que o índice médio de um munícipio pode esconder valores extremos. Por exemplo, uma localidade que tenha um LIRAa médio de 1,2% provavelmente poderá ter muitos bairros com índices próximos a zero, mas uns poucos com percentuais acima de três, quatro ou mesmo cinco por cento. E é justamente nesses poucos bairros com infestação domiciliar elevada que os surtos costumam começar. Quanto à relação entre as duas doenças, podemos afirmar com certa margem de segurança que o crescimento da chikungunya não tem relação direta com o estágio em que se encontra a dengue. O correto, me parece, seria afirmar que ambas têm estreita relação com os índices de infestação domiciliar pelo Aedes.
As campanhas de prevenção à dengue e de não proliferação do mosquito são suficientes para conter a chikungunya?
Campanhas podem contribuir para reduzir o impacto, a magnitude das epidemias, mas são insuficientes para impedir a disseminação do vírus. Nunca é demais lembrar que as condições que contribuem para a proliferação de focos dos mosquitos Aedes têm suas raízes fincadas no modelo de desenvolvimento social e econômico adotado pelo Brasil ao longo de séculos. Embora importantes, as campanhas de prevenção à dengue não mudam, e nem teriam governabilidade para mudar, a determinação social relacionada com a ocorrência dessas doenças transmitidas por vetores. Concordo que a redução dos criadouros do mosquito pode ter contribuído para reduzir momentaneamente o risco de ocorrência de chikungunya. No entanto, não podemos criar ilusões em relação ao atual modelo de combate ao mosquito, que vem sendo aplicado de forma ininterrupta durante os últimos trinta anos. Sem sucesso! Com as ferramentas atualmente disponíveis, a prevenção da chikungunya é a mesma que se faz contra a dengue, o que equivale dizer que estamos no mesmo dilema, pois essa ferramenta não tem apresentado sustentabilidade de longo prazo.
Dengue e chikungunya têm sintomas semelhantes, o que pode levar a diagnósticos errados e camuflar casos de dengue, que necessitam de intervenção rápida. Como isso vem sendo ou deve ser enfrentado?
De fato, a possibilidade de confusão diagnóstica preocupa os profissionais e os gestores da saúde. O princípio fundamental no manejo clínico do doente com suspeita de dengue e chikungunya é: na dúvida, o caso deve ser conduzido como dengue, pelo menos durante os primeiros cinco a seis dias!
Por que são necessários exames laboratoriais para se distinguir a dengue da chikungunya?
Nunca é demais relembrar que o transmissor das duas doenças é o mesmo, o mosquito Aedes. Por essa razão, os dois vírus deverão circular simultaneamente no país, o que exige cuidados redobrados no atendimento dos casos suspeitos. Quando as manifestações clínicas de chikungunya são mais intensas, mais clássicas, o diagnóstico pode ser feito com base nos sinais e sintomas, sem necessidade de exames específicos, como sorologia, por exemplo. Mas, muitas vezes o quadro clínico pode ser mais brando, facilitando a confusão diagnóstica. Nessas situações, exames laboratoriais são importantes, uma vez que o manejo clínico é diferente.
Quais os principais sintomas da doença e seu grau de letalidade?
Os principais sinais e sintomas de chikungunya são febre intensa de início abrupto e comprometimento articular que costuma envolver várias articulações, de forma bilateral e simétrica, na maioria das vezes. Em um percentual elevado há dores muito intensas e edema local, que pode comprometer o desempenho de atividades cotidianas, como dirigir, cozinhar ou digitar. A fase aguda dura até dez dias; nos casos cujas manifestações clínicas persistem por mais tempo tem-se uma fase subaguda, que perdura até 90 dias. Há um percentual, que varia de epidemia para epidemia, que continua apresentando dores articulares intensas por mais de três meses, casos que entram na fase crônica da doença. Sobretudo nas fases subaguda e crônica, as dores podem ser agravadas por inflamação da bainha dos tendões, principalmente em punhos e tornozelos, interferindo no caminhar do doente, reduzindo a sua mobilidade. A chikungunya pode causar também manifestações cutâneas, dores de cabeça e nos músculos, além de náuseas e vômitos. Embora com elevadas taxas de ataque, expressas por alto grau de morbidade, de adoecimento, a chikungunya causa menos mortes que dengue — mas também pode matar! Considerando que as manifestações clínicas podem persistir por meses, podemos antever graves consequências para a rede assistencial.
O que cabe aos gestores e aos profissionais de saúde no controle e prevenção da nova doença?
Chikungunya será mais um desses graves problemas que atingem diretamente o sistema de saúde, tanto público quanto privado, cuja origem e solução definitiva estão fora do setor Saúde, distante da governabilidade dos gestores e profissionais de saúde. Isso não significa dizer que devemos cruzar os braços; acredito que quando temos a exata dimensão do problema, incluindo nossas limitações e potencialidades para intervir, os resultados são mais consistentes. O primeiro passo é admitir a possibilidade de ocorrência de epidemias e organizar a rede de serviços de saúde para enfrentá-las. Espero que não aconteça com a chikungunya o que tem ocorrido com dengue.
A que o senhor se refere?
À relutância de algumas autoridades sanitárias em admitir a possibilidade de epidemias de dengue, por exemplo, que serve apenas para desmobilizar a população, os profissionais de saúde e as próprias instâncias gestoras do SUS, contribuindo para a demora no preparo da rede de saúde e a consequente ocorrência de elevadas taxas de letalidade. É inacreditável como, por vezes, a realidade não é suficiente para sensibilizar gestores e quadros técnicos de diversas instâncias de secretarias municipais ou estaduais de Saúde, ficando para os meios de comunicação a missão de informar a opinião pública sobre a ocorrência de epidemias.
O que é necessário providenciar neste momento do ano para que em 2016 não se agravem os casos de febre chikungunya e se mantenha a dengue sob controle?
Toda e qualquer ação individual ou coletiva que ajude a reduzir o número de focos potenciais de procriação do mosquito transmissor é bem-vinda. Além de manter nossos ambientes saudáveis, devemos cobrar do poder público que mantenha os espaços públicos limpos, realizando a coleta e destinação dos resíduos sólidos urbanos de forma adequada e, nesses tempos de crise hídrica, que apresentem soluções estruturantes para prover a regularidade do fornecimento de água para uso doméstico. Chega de soluções paliativas.
Que impactos trará ao controle da chikungunya o isolamento do vírus pela Fiocruz Paraná e a elaboração de um kit diagnóstico acessível para detectar a doença?
Esse isolamento permitirá a replicação do vírus em outros tipos de células, contribuindo para acelerar pesquisas relacionadas, por exemplo, aos mecanismos de ação do vírus no organismo humano e ao diagnóstico da infecção. Em médio prazo, creio que a principal contribuição será a produção em larga escala de um kit rápido para diagnóstico de chikungunya, objeto de pesquisas na Fiocruz Paraná há mais de três anos. Esse kit deverá ser produzido em larga escala pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/ Fiocruz), no Rio de Janeiro, responsável pela produção para o SUS. O diagnóstico rápido contribuirá de forma marcante para reduzir a angústia daqueles doentes que convivem durante semanas ou meses com as dores e a incerteza quanto à verdadeira causa de seu sofrimento.
Revista Radis, 01/05/2015