Tempo de incertezas

Com menos de um centímetro de comprimento, de aparência inofensiva, cor de café ou preta e com listras brancas no corpo e nas pernas, o Aedes Aegypti se tornou o vilão da vez em 2015 e passou a ocupar um lugar central na cobertura dos meios de comunicação. Incessantemente, os dispositivos midiáticos esmiuçaram o seu comportamento e ciclo de vida, e tornaram familiar o vírus zika, transmitido pelo Aedes, que até então havia circulado de forma restrita no Brasil. No centro de uma emergência sanitária mundial, e lidando com uma incerteza científica, a mídia nem sempre foi cautelosa na divulgação de informações, tratou o assunto muitas vezes com sensacionalismo e provocou reações de medo e pânico diante do desconhecido.

Esse quadro geral foi traçado por pesquisadores de diversos campos do conhecimento que buscaram compreender os sentidos provocados pela epidemia de zika, na abertura do ano letivo dos cursos de especialização em Comunicação e Saúde, oferecido pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), e em Divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz (Coc/Fiocruz). Nos dois eventos, ocorridos em abril, no campus da Fiocruz, no Rio de Janeiro, foram analisados os impactos provocados por esse momento de “desconhecimento” científico que se equipara ao início da epidemia da aids, na década de 80.

Manchetes que falam

O seminário “Comunicação e Informação em tempos de zika”, realizado em 10/3, marcou a aula inaugural do Icict/Fiocruz. Professora do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Icict/Fiocruz) e pesquisadora do Observatório Saúde na Mídia do Laboratório de Comunicação e Saúde (Laces/Icict/Fiocruz), Inesita Araujo afirmou que a emergência de vírus zika expõe lacunas, tira pesquisadores de comunicação e saúde da zona de conforto e cobra ação dos serviços de saúde. Ela comparou a imagem do vírus zika com a de uma personagem de um filme do cineasta italiano Federico Fellini (1920/1933), que entra no meio da trama para desequilibrar caminhos e expor seus conflitos. Para a professora, o tempo é de incertezas e também de muita aprendizagem. “O zika é mais do que o mosquito Aedes, o vírus, a epidemia”, declarou.

Inesita avaliou, ao lado da orientanda de doutorado Raquel Aguiar, coordenadora de comunicação do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), capas e manchetes de nove veículos impressos nacionais para tentar entender as questões que emergem das páginas dos jornais e que vão além das recomendações com a prevenção e a transmissão da doença. Em artigo publicado na Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde (Reciis), as duas pesquisadoras identificaram que a abordagem da imprensa revela pontos como o contraste entre a superexposição da microcefalia e sua invisibilidade antes da epidemia de zika — indicando relação do fenômeno com a condição econômica e social das pessoas afetadas; as narrativas baseadas no sofrimento, com responsabilização e estigma sobre as vítimas; o predomínio de certezas onde só pairam hipóteses científicas; a associação entre medo e risco; e um cenário onde disputam as vozes de autoridades públicas, de cientistas e da população, amplificado com o uso das redes sociais, entre outros.

No evento, Luís Castiel, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), indicou que é preciso discutir o papel da comunicação na difusão de boatos sobre o risco trazido pelo vírus. “O zika amplificou a ameaça em uma era de incertezas. Essa é uma doença com altos teores de desconhecimento que provocou o transbordamento da ideia de controle, de autocontrole”, comentou. Segundo ele, a própria situação enfrentada é “repelente e profundamente desagradável”. Por isso, o produto repelente pode ser usado como elemento alegórico ao trazer a ideia de proteção contra o mundo, como se ele trouxesse danos. “Vivemos obsessivamente preocupados com a ideia de ameaças e obcecados com a busca de segurança, que teima em escapar”, disse. Diante de um fenômeno midiático como o zika, o pesquisador entende que não há respostas normais ou racionais que garantam uma certeza de futuro. “No momento em que sabemos mais sobre o zika, aumenta o estresse com nosso poder de controlar essa epidemia, a sensação de não estarmos protegidos de outras doenças emergentes. O que fazer diante da incerteza que a zika coloca?”, questionou. Ele lembrou, ainda, que não sem razão Aedes, em grego, quer dizer “odioso”. “Esse é um infortúnio pronto”, brincou.

Guilherme Franco Netto, assessor da Vice-presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz), propôs uma visão participativa e inclusiva frente a noção tutelada da comunicação e da informação. “Precisamos fazer rupturas nos esquemas de pensamento que compreendem a comunicação como instrumento gerador de conformidade, de obediência às diretrizes estabelecidas pelos círculos do poder, e optar por uma visão de uma comunicação como arena de construção coletiva de significados”, argumentou. Ele sugeriu também a substituição da noção privatista, circunscrita da comunicação e da informação, em favor de uma visão que as relaciona como bens comuns e públicos.

Mobilização e saber popular

Com o tema “Comunicação, educação e participação social no controle das doenças transmitidas pelo Aedes Aegypti”, os participantes da mesa-redonda que abriu o curso de especialização da Coc/Fiocruz, em 7/3, avaliaram a tríplice epidemia de dengue, chikungunya e zika. Denise Nacif Pimenta, pesquisadora do Laboratório de Educação em Saúde e Ambiente (Laesa) no Centro de Pesquisas René Rachou/Fiocruz Minas, afirmou que o trabalho com comunidades pede uma visão que não seja a biomédica. “É necessário ir além das práticas tradicionais de transferência de informações para outras baseadas no diálogo e no respeito ao saber popular”, disse. Segundo ela, o conhecimento inclui outras visões além da ciência. Como exemplo, ela citou o “dengue religioso”, no qual o doente procura obter a cura por meio de uma benção, e de receitas caseiras utilizadas como proteção ao vírus. “Neste caso, há outra lógica em curso. O olhar do outro tem que ser respeitado quando se faz trabalho de campo”, afirmou.

Denise disse, ainda, que as metáforas utilizadas contra o Aedes são as mesmas da época de uma política higienista, com campanhas ainda sendo elaboradas pelo departamento de marketing. “O que significa a ideia de combate, de inimigo, da batalha contra o mosquito? Esses termos utilizados na recente epidemia de dengue, zika e chikungunya podem minar as estratégias de prevenção e controle”, disse, alertando que as abordagens baseadas no vetor sempre se mostraram insuficientes. “As ciências humanas e sociais podem contribuir para uma reflexão crítica deste problema”, propôs, destacando o conceito de produção social da saúde e da doença e a importância de como são empregadas as metáforas. Ela criticou ainda o “webalarmismo” que dominou as redes sociais nesse momento de emergência. “Muitas vezes o medo é usado para criar pânico e ele também é uma forma de controlar a doença”, resumiu.

Herton Escobar, repórter do jornal O Estado de S. Paulo, entende que a situação de emergência exige dos jornais rapidez na veiculação de notícias. “No jornalismo científico, é difícil trabalhar com o imediatismo, pois não dá tempo para aprofundar e checar dados. Como lidar com tantas dúvidas e informações?”, perguntou. Segundo ele, em momentos como esse, é tentador para o comunicador utilizar o sensacionalismo para aumentar a sua audiência. Para isso, recomendou uma “tríplice vacina”: apurar, trabalhar com cautela e verificar a informação. Para ele, hoje não é mais possível impedir a propagação de incertezas, mas é preciso contextualizar e distinguir qual informação é confiável: “O fato de se ter mais informação disponível não significa que as pessoas estarão melhor informadas”, argumentou.

Revista Radis, maio 2016