Desde a sua criação, há 25 anos, Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta diversas barreiras à sua implantação e consolidação. Mudanças políticas e econômicas impactaram fortemente a capacidade de financiamento do sistema público brasileiro e a ampliação da oferta de ações e serviços públicos, impulsionando o alto grau de mercantilização e privatização existente hoje. Atualmente, o SUS continua a sofrer com diversos problemas que o mantém distante do sistema universal e integral garantido pela Constituição de 1988. Região e Redes entrevistou Eduardo Fagnani, economista doutor em políticas sociais pela Universidade de Campinas (Unicamp), sobre os desafios a serem enfrentados nos próximos anos e décadas para garantir o pleno direito à saúde no Brasil.
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Região e Redes – Por que, depois de 25 anos de sua criação, o SUS ainda não foi plenamente implantado?
Eduardo Fagnani – É preciso pensar essa questão numa perspectiva histórica e mais estrutural. O movimento sanitarista, que lutou pelo SUS e foi crítico ao modelo de saúde da ditadura, atuou fortemente nos anos de 1970, período em que estava na agenda uma discussão reformista e democrática baseada nos paradigmas do Estado de Bem Estar Social Europeu. Depois de um longo processo, isso deságua na Constituição de 1988, que formalizou a saúde igualitária, integral e universal como um direito fundamental à cidadania.
Mas, a partir de 1990, o paradigma do neoliberalismo se torna hegemônico e com ele suas teses de Estado Mínimo, focalização, mercantilização e privatização. Ao longo dos anos 1990 até 2002 as tensões foram muito fortes. Por exemplo, em 1993 deveria ter sido feita uma revisão Constitucional, que o ambiente político não permitiu. Se tivesse ocorrido, o SUS teria sido extinto.
A partir de 1993 vieram as reformas e o Estado teve de se adaptar à austeridade macroeconômica, aos ajustes fiscais, aos superávits primários e aos juros elevados. Tudo isso é incompatível com sistemas públicos universais, como o SUS. Daí resultam os problemas que o Sistema vive até hoje, como o fortalecimento do setor privado e a ausência de investimento na expansão da oferta pública. É verdade que aumentou a oferta de serviços básicos, mas o pacto federativo feito em 1988 se esgotou e há restrições financeiras de toda ordem, com ausência de fonte de financiamento.
A partir de 2002, aumentaram os gastos, mas alguns problemas estruturais não foram enfrentados. Mas, sem dúvida, o ponto de partida para pensar isso tudo são os dois paradigmas. O que está na Constituição formalmente e o que aconteceu nos anos 1990 em função do contexto político e econômico.
RR – Diante dessa perspectiva, como pensar o SUS dentro de um plano mais amplo de desenvolvimento para o futuro?
EF – Primeiramente, identificar a partir desses gargalos estruturais as grandes questões a serem enfrentadas. A principal delas é a desigualdade do acesso entre classes sociais e entre regiões. Enfrentar isso é difícil, mas passa pela revisão das fontes de financiamento. Fazer uma reforma tributária é fundamental. Assim como, a extinção da Desvinculação das Receitas da União (DRU) e a revisão das políticas de desoneração fiscal que foram dadas a diversos setores da economia desde a década de 1990. O SUS tem de ser parte da seguridade social, como garante a Constituição. E esse orçamento é superavitário todos os anos.
Também temos de rever o pacto federativo, esvaziado ao longo dos anos, que fez estados e municípios assumirem muitas tarefas. Outra questão é enfrentar a mercantilização e a privatização da oferta de serviços. Um último ponto importante é a gestão pública. Nós precisamos de uma gestão mais eficiente, o que significa passar por uma complexidade de desafios. Por exemplo, a institucionalização de uma carreira pública e a revisão da Lei de Responsabilidade Fiscal para saúde, educação e assistência social. Essa Lei limita o gasto com pessoal em 50%, mas esses setores gastam até 90% com pessoal. A saída é terceirizar e contratar OS, Oscip, ONG e cooperativas [instituições sem fins lucrativos], que entram no orçamento não como gasto com pessoal, mas como serviço de terceiros. É praticamente inviável gerir um sistema como o SUS com as diferenças de cargos e salários que isso causa.
RR – Vários dos problemas que o senhor citou atingem outras áreas sociais. Dá para enfrentar essas questões apenas lutando pelo direito universal à saúde? Ou é necessário fazer uma articulação com questões mais amplas?
EF – É preciso pensar saúde na perspectiva do desenvolvimento. É preciso que a agenda do setor saúde também incorpore questões mais amplas, como o reforço do papel do Estado. Nós não vamos resolver as desigualdades sociais e da saúde no Brasil com o setor privado. O Estado é fundamental. Não existe país civilizado e desenvolvido no qual o Estado não cumpriu um papel fundamental na economia e enfrentamento às desigualdades.
Outra questão é a reforma política. Hoje, o presidente é obrigado a se articular com 34 partidos, que geralmente são fisiológicos e não programáticos. Como fazer um projeto de ampliação e consolidação do SUS tendo que negociar com a bancada da saúde? Como vamos avançar na questão da reforma agrária se é necessário se articular com a bancada do agronegócio? É impossível!
Tem que pensar a questão da economia. A pior política de saúde que existe é estagnação da economia e juros altos. Se a economia não crescer, os salários não aumentarem e os juros não caírem, nós não avançaremos na questão social, porque será necessário fazer superávit primário, cortar gastos públicos. Estou falando de saúde, mas vale para educação, saneamento, habitação. As questões setoriais não serão resolvidas se não se enfrentar as questões estruturais.
Essas questões têm de estar nas pautas dos movimentos sociais para podermos avançar.
RR – Quais as suas perspectivas sobre o que tem sido discutido na campanha eleitoral para presidência?
EF – O que tenho ouvido sobre Banco Central, metas de inflação e reforço do tripé macroeconômico me deixa muito preocupado. Como eu disse, seria a pior política de saúde e educação que pode existir. Afinal, é incompatível a ortodoxia macroeconômica e a austeridade fiscal com desenvolvimento social. É impossível conseguir austeridade macroeconômica e sistemas universais de política social. A única alternativa que funciona para essa política são os programas de transferência de renda focalizados nos mais pobres. Essa é uma ameaça concreta que reforma a necessidade de pensar a política de saúde para além do setor saúde, integrado-a com outras áreas.
RR – O que a militância pelo direito à saúde e o movimento da reforma sanitária tem a contribuir com esse debate?
EF – Os ensinamentos são extraordinários. Alguns setores se apropriaram disso, como a assistência social e a segurança alimentar. Mas o que acho mais importante é que a saúde desenha um modelo de cooperação entre níveis de governo. O SUS é responsabilidade da União, dos estados e dos municípios. E mais importante é isso não ter ficado só no papel. Conseguiu-se colocar na prática, através de pactos entre os níveis de governos, uma melhor maneira de inserir obrigações e contrapartidas. Essa é uma grande contribuição que o SUS dá para a política social brasileira. Outros setores, como os das políticas urbanas, até hoje não fizeram isso e vivem problemas enormes.
RR – Voltando para a saúde, como a regionalização da gestão do SUS pode contribuir com o combate às desigualdades sociais e territoriais, e ajudar a avançar mais na consolidação do direito à saúde no Brasil?
EF – Um projeto de governo precisa enfrentar as desigualdades. E não só da renda, mas a desigualdade da propriedade, do sistema tributário, no trabalho e no acesso aos serviços sociais, tanto em termos de classes sociais quanto regionais.
Fazer esse enfrentamento das várias faces da desigualdade deve ser o núcleo de uma agenda de desenvolvimento para o País. Assim recoloca-se a discussão de como universalizar a cidadania social e isso passa pela regionalização. O SUS tem que chegar aos lugares onde não chegou.
A regionalização é um caminho extremamente fértil e útil para que consigamos universalizar ações e serviços de saúde no Brasil. Esse é um desafio enorme que a sociedade brasileira precisa enfrentar. De todos os setores sociais, o SUS, por toda a sua estrutura, pelo avanço na articulação entre os níveis de governo e pelos os pactos que já foram selados, é um dos setores que mais tem condição de avançar nesse sentido.
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Região e Redes, Outubro de 2014