A crise do abastecimento de água no Sudeste do país levou o assunto às manchetes e mobilizou a sociedade, deixando à margem uma outra questão sanitária relevante — a universalização do esgotamento sanitário. Apesar de os problemas estarem intimamente ligados e repercutirem diretamente na saúde da população, pouco se tem falado em esgotamento sanitário: ao lado do conjunto de serviços, infraestruturas e instalações de abastecimento de água, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais urbanas, é um dos elementos que compõem o saneamento básico. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) indicam que há, no mundo, 2,5 bilhões de pessoas que ainda não contam com instalações sanitárias adequadas —70% delas residindo nas áreas rurais; 1 bilhão de pessoas do planeta também não têm banheiros em suas casas, satisfazendo suas necessidades fisiológicas a céu aberto.
Relator especial da ONU para o direito humano à água segura e ao esgotamento sanitário, o engenheiro civil Léo Heller, pesquisador do Centro de Pesquisas René Rachou (Fiocruz Minas), adverte que a questão deve ser tratada sob a ótica do direito humano: “O saneamento deve espelhar o ponto de vista do usuário, não o do prestador de serviços”, disse à Radis. Para ele, medidas referentes à resolução de problemas de esgotamento sanitário e também à crise no acesso à água, por exemplo, devem combinar universalização com proteção aos grupos mais vulneráveis.
“O direito humano ao esgotamento sanitário assegura a todos, sem discriminação, soluções física e economicamente acessíveis, em todas as esferas da vida, de forma segura, higiênica, social e culturalmente aceitável, promovendo privacidade e dignidade”, afirma Léo. Segundo ele, não há como dissociar a política pública para a água da política de esgotos. “Existe uma normativa que fala que todos os direitos humanos são indissociáveis e interdependentes. Por isso esses temas devem ser tratados de forma conjunta”, ressalta. Ele informa que esse direito converge com o que está inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que em seu artigo 25 diz que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem estar”.
Léo também citou o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1996, que determina que todas as pessoas têm direito a um nível de vida suficiente para si e para suas famílias, o que inclui alimentação, vestuário e habitação suficientes. “A resolução da ONU que estabelece o direito à água e ao esgotamento sanitário é bem mais recente”, sinalizou o pesquisador, ao afirmar que somente em 2002 o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas emitiu um comentário específico sobre o direito à água, o de número 15. Segundo ele, em 2010 a ONU aprovou resoluções em sua Assembleia Geral e no Conselho de Direitos Humanos afirmando ser o acesso à água limpa e segura e ao esgotamento sanitário adequado um direito humano, essencial para o pleno gozo da vida e de outros direitos. “No total, 122 países aprovaram a medida, mas houve 41 abstenções, embora nenhum voto contrário. Não houve consenso. E isso é um problema, pois quando uma resolução é aprovada por consenso automaticamente transfere para os países a obrigação de respeitá-la”. Ele explica que há controvérsias em relação à posição que cada país irá adotar. “O Brasil votou a favor e isso obriga o país a respeitar esse direito”, disse.
Negligência no Brasil
Apesar de questão importante, o saneamento ainda é um problema que não recebe atenção devida, sobretudo nos países em desenvolvimento, alerta a geógrafa Denise Kronemberger, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ela informa que o saneamento é uma das metas previstas pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), conjunto de metas definidas pela ONU desde 2000, e também está contemplado na agenda de desenvolvimento pós-2015, por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que substituirão os ODM a partir de setembro. “Tais objetivos se propõem a assegurar o acesso equitativo e universal à água potável e ao esgotamento sanitário para todos até o ano de 2030”, explica.
Apesar disso, no Brasil milhões de pessoas não têm acesso a este direito fundamental, vivendo em ambientes insalubres e expostos a diversos riscos que podem comprometer a sua saúde. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada pelo IBGE em 2013, registra um discreto aumento na proporção de lares com acesso à rede coletora de esgoto (de 63,3%, em 2012, para 64,3%, em 2013, totalizando 41,9 milhões de unidades), mas atesta que 1,6 milhão de domicílios brasileiros (2,4% do total) não possuem qualquer tipo de esgotamento sanitário, sendo 1,1 milhão na região Nordeste. Entre os moradores que não têm acesso à rede de esgoto, 12,7% usam fossa séptica regular (sem ligação à rede), 18,6% têm fossa rudimentar, e outros 2,8% usam outro tipo artesanal de esgotamento, indica a pesquisa. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) indicam que apenas 39% do esgoto é tratado.
No país, desde 2007 vigora a Lei nº 11.445 que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico. A lei instituiu o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), eixo central da política federal para o setor, promovendo a articulação entre estados e municípios, sob a coordenação do Ministério das Cidades. O plano estima investimentos de R$ 508 bilhões, entre 2013 e 2033, prevê metas nacionais e regionalizadas de curto, médio e longo prazos, e também trata das ações da União relativas ao saneamento nas áreas indígenas, reservas extrativistas e comunidades quilombolas. De acordo com o Conselho Nacional de Cidades — estrutura do Ministério das Cidades que é responsável pelo acompanhamento do Plansab — os municípios devem concluir seus planos de saneamento até o fim de 2015, condição para que as cidades tenham acesso aos recursos da União.
Desigualdades no acesso
A sanitarista Uende Aparecida Figueiredo Gomes, professora da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), aponta que, além de o déficit no acesso ao saneamento ser elevado, este é maior entre as populações mais pobres no país. Ela cita estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2007, que demonstra que os 20% mais ricos da população do país têm acesso a 90% de cobertura de acesso à coleta, quase uma universalização, enquanto entre os 20% mais pobres essa percentagem cai para algo em torno de 60%. Uende salienta que o acesso adequado não é somente acesso à rede ou ao sistema individual, mas também envolve a coleta e o afastamento [por meio de fossa ou sistemas de redes coletoras]. “É de fundamental importância ampliarmos o tratamento dos esgotos antes da disposição final”, explica a professora.
Em relação às estimativas de acesso, Uende detecta que há uma valorização dos dados quantitativos em detrimento daqueles que tratam da qualidade dos serviços ofertados. Ela aponta que os indicadores que avaliam o acesso ao serviço — seja de esgoto, água, drenagem ou coleta de resíduos sólidos — nem sempre são suficientes. “Esse tipo de informação, quando utilizado de forma pontual, pode apresentar distorções”, adverte. A professora afirma que há pouca informação sobre a qualidade do serviço, como se dá o acesso e como está a democratização deste direito no país. “A área de saneamento reafirma a desigualdade do Brasil. Em todos os sentidos, são os mais pobres os mais prejudicados. Precisamos avançar para verificar como está a distribuição heterogênea do déficit, concentrado nas camadas de menor poder aquisitivo”, diz.
Léo Heller também confirma que as estatísticas não retratam quantidade, qualidade e continuidade dos serviços, acessibilidade, riscos à saúde e impactos sobre escolas e serviços de saúde. “O acesso é tratado a partir das médias nacionais e há um precário monitoramento em relação às desigualdades”, explica. Ele informa que o atual programa de monitoramento da ONU trabalha com a noção de “acesso melhorado”, que pode incluir situações de acesso precárias, não adequadas, como fossas rudimentares, em zonas urbanas densamente povoadas. “Não se fala nada para onde vão os esgotos”, diz, lembrando que o tema ambiental é relativamente negligenciado.
Políticas conjuntas
Água e esgoto devem ser tratados como políticas conjuntas. A ausência de um ou de outro elemento traz impactos negativos para a saúde humana e reforça o ciclo de pobreza, advertem especialistas. O engenheiro de Saúde Pública André Monteiro, pesquisador do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (Fiocruz Pernambuco), observa que o esgoto sem destinação adequada contamina os espaços de circulação coletiva, favorecendo a transmissão de várias doenças. Nas favelas, exemplifica, a falta de acesso regular à água e a precariedade do esgoto produzem condições sanitárias inadequadas, permitindo que crianças se contaminem no entorno de suas casas, num ciclo que ele definiu como “feco-oral”. Uende concorda. Para ela, as condições de vida de uma pessoa que tem esgoto na frente do seu domicílio ou no peridomicílio são piores. “Isso fortalece e reforça o ciclo de pobreza”.
O geógrafo Christovam Barcellos, chefe do Laboratório de Informações em Saúde, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), alerta que não basta tratar e distribuir água com qualidade para garantir a saúde da população. “As pessoas se expõem às doenças não só bebendo água, mas consumindo alimentos, aproveitando momentos de lazer, tomando banho em rios e praias e, em áreas rurais, lavando roupas e louças nos cursos d´água”, afirma. Ele explica que desde o século 19 há comprovação de que o esgoto é um componente básico do funcionamento das cidades, e observa que houve evolução no interior dos domicílios. “95% da população urbana têm acesso à rede geral de água e 65% têm suas casas ligadas à rede de esgoto”, diz o pesquisador, citando informações do Censo 2010, do IBGE. Para ele, no entanto, o mesmo não se pode dizer quando se observa o que acontece do lado de fora das casas. “Não tenho a menor dúvida que o investimento foi muito mais individual do que resultado de uma política pública”, diz ele, alertando que as pessoas pensam mais em conforto do que em saúde. “Para o indivíduo, o que importa é levar o esgoto para longe da comunidade ou de sua casa”, observa, lembrando que hoje, por conta da precariedade na distribuição de água e do esgoto a céu aberto, a rua é um grande fator de risco para as chamadas de Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI).
Pesquisadora do Instituto Brasildeiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), Denise Kronemberger orienta que bons serviços de saneamento (coleta e tratamento) contribuem para melhorar a qualidade de vida da população — já que reduzem a mortalidade infantil, diminuem as faltas no trabalho, favorecem a moradia saudável e o turismo — e significam menores custos para a saúde pública, já que a redução do número de casos implica em menos internações hospitalares e melhor aplicação de recursos. A redução nos custos com internações permitiria ampliação de leitos hospitalares ou a compra de equipamentos, exemplifica.
Disparidades na periferia
Denise orienta que investimentos em saneamento devem priorizar áreas mais carentes, no intuito de reduzir disparidades. “É uma questão de planejamento e de disponibilizar recursos financeiros para a implantação dos sistemas de abastecimento de água, de coleta e tratamento de esgoto e de coleta e disposição final do lixo para alcançar a universalização”, comenta.
Os índices de cobertura dos serviços de esgotamento sanitário apontam uma demanda não atendida, principalmente nas comunidades de baixa renda das cidades, nas periferias e também nas áreas rurais, afirma a geógrafa Ana Lúcia Britto, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Os dados também mostram que são os mais pobres que não têem acesso à coleta e tratamento de esgoto”, assegura. Ela cita como exemplo a cidade do Rio de Janeiro, onde os índices de tratamento de esgoto pioram à medida que se desloca da capital para a periferia. “Em municípios como Japeri e Queimados (situados na zona da Baixada Fluminense, no estado do Rio) há praticamente zero de coleta e tratamento”, diz a pesquisadora.
Em relação aos domicílios localizados em áreas rurais, o quadro também é ruim, registra a Pnad, em 2012. Segundo a pesquisa, somente 5,2% dos domicílios rurais possuem coleta de esgoto ligada à rede geral e 28,3% possuem fossa séptica (ligada ou não à rede coletora). Fossas rudimentares e outras soluções são adotadas por 45,3% e 7,7% dos domicílios rurais, respectivamente. De acordo com a pesquisa, em sua maioria as soluções adotadas são inadequadas para o destino dos dejetos: há fossas rudimentares, valas e o despejo do esgoto in natura diretamente nos cursos d’água. Além disso, 13,6% das residências não dispõem de nenhuma solução para o esgoto doméstico.
Revista Radis, 01/07/2015