“Não há dúvida que a principal questão de Saúde Pública, hoje, é como retomar a prioridade da vacinação em nossa sociedade. Esta é a ação mais efetiva para proteção da saúde, que tem como resultado direto a redução da morbimortalidade por causas imunopreveníveis e a erradicação de diversas doenças”, afirmou o diretor-adjunto da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), Jarbas Barbosa, durante o lançamento do livro “Vacinas e Vacinação no Brasil: horizontes para os próximos 20 anos”, da iniciativa Brasil Saúde Amanhã, da Fiocruz, dia 17 de dezembro. O evento on-line, que contou com a participação virtual dos organizadores e autores, além de outras referências na área, abordou os desafios para a inovação, o desenvolvimento tecnológico e a produção de vacinas, a organização do Sistema Único de Saúde (SUS) para a imunização da população, o enfrentamento da redução da cobertura vacinal, a pandemia de Covid-19 e as estratégias de longo prazo para o país.
“A iniciativa Brasil Saúde Amanhã representa o esforço da Fiocruz em realizar a prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro, a partir da proposição de cenários futuros para as diversas dimensões da organização dos cuidados em saúde no Brasil. Em 10 anos, já publicamos diversos livros, mais de 40 Textos para Discussão, que estão disponíveis em acesso aberto em nosso portal, e seminários que este ano passaram a ser realizados on-line”, apresentou o sanitarista José Noronha, coordenador executivo da rede Brasil Saúde Amanhã, pesquisador do do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) e um dos organizadores da obra.
Lançado pelo selo Porto Livre, do Icict/Fiocruz , o livro é resultado do seminário homônimo realizado em junho de 2019 pela iniciativa Brasil Saúde Amanhã. “O selo Porto Livre é uma iniciativa de fundamental importância para o Icict, a Fiocruz, o SUS e toda a sociedade brasileira, que visa publicar grandes debates e favorecer a circulação do conhecimento em acesso aberto. Hoje lançamos uma obra sobre vacinas: não há tema mais atual e é uma grande satisfação contribuir com a iniciativa Brasil Saúde Amanhã”, declarou o diretor do Icict/Fiocruz, Rodrigo Murtinho.
Ao conteúdo apresentado no evento, a obra integra duas notas complementares que atualizam o debate à luz da pandemia de Covid-19: “Desenvolvimento e produção da vacina SARS-CoV-2”, assinada por Cristina Possas e Akira Homma, e “A pandemia da Covid-19 e os desafios estruturais da inovação para o acesso universal no Brasil”, de Carlos Gadelha, coordenador das Ações de Prospecção da Presidência da Fiocruz. “Se no primeiro ensaio perguntamos se morreremos, seremos medíocres ou inovadores, com a nota complementar podemos afirmar, seguramente, que assumir participação ativa na inovação global é decisivo para a permanência de uma estratégia que articula produção local com acesso universal. A pandemia de Covid-19 evidencia a Ciência e a Tecnologia como componentes centrais de uma política de acesso universal”, apontou o autor.
Palavras dos organizadores
O sanitarista Paulo Gadelha, coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030, ressaltou a consonância do debate com o marco global proposto pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). “Hoje lançamos mais uma produção de altíssima qualidade da iniciativa Brasil Saúde Amanhã, que vem articulando sua perspectiva móvel de 20 anos ao marco global da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que nos coloca o norte da equidade. Agora temos 10 anos até 2030 e diversas questões relacionadas aos ODS se colocam de forma complexa, com muitos obstáculos. Pensar o futuro pós-2030, como propõe essa rede de pesquisa, é essencial. A questão das vacinas está expressa explicitamente no ODS 3 e é um caso paradigmático para o exercício de pensar a Ciência, a Tecnologia e a Inovação sob o olhar da equidade”, ressaltou Gadelha.
Autoridade global no tema, o cientista Akira Homma, assessor sênior científico e tecnológico de Bio-Manguinhos, considerou que a pandemia de Covid-19 trouxe muitos aprendizados para o setor Saúde e a área de vacinas. “Nunca, na História da Ciência, conseguimos chegar a um imunizante em apenas um ano. Esse conhecimento deve ser incorporado ao desenvolvimento de novas vacinas e ao aperfeiçoamento de produtos antigos. Uma lição imponderável para quem trabalha com políticas públicas de Ciência, Tecnologia e Inovação é que, com decisão política, é possível promover programas de aceleramento da produção de vacinas. É isso o que precisamos conquistar no Brasil”, afirmou o cientista.
A assessora científica de Bio-Manguinhos, Cristina Possas, destacou que o livro aprofunda duas questões fundamentais em relação às vacinas e à vacinação. “A primeira diz respeito a um problema anterior à Covid-19: o intenso declínio da cobertura vacinal em nosso país. A segunda trata de inovação, desenvolvimento tecnológico e produção de vacinas. Abordamos o baixíssimo investimento de nosso país nesta área estratégica para o desenvolvimento nacional e suas consequências agora, na pandemia de Covid-19, e também no enfrentamento a outras doenças infecciosas, como a febre amarela. Articulando essas duas dimensões, propomos recomendações para um Plano Estratégico Nacional de longo prazo, com foco na sustentabilidade”, detalhou a pesquisadora.
Jarbas Barbosa: vacinas e vacinação no Brasil
Em sua conferência, intitulada “Desafios atuais para os programas de vacinação na América Latina”, o diretor adjunto da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), Jarbas Barbosa, enfatizou que a missão de imunizar a população vai além do desenvolvimento e da produção das vacinas. “Para a vacina chegar à sociedade são necessárias muitas providências. É imprescindível ter uma Atenção Primária fortalecida, que não perca nenhuma oportunidade de vacinação. É preciso adotar novas tecnologias, como a transferência do registro de doses administradas, que nos dá uma inferência sobre a cobertura vacinal, para o registro individual, para o acompanhamento de cada cidadão. Também são necessárias novas estratégias para a análise de dados. O que significa uma cobertura vacinal média de 95% em uma cidade como Fortaleza? Absolutamente nada”, sentenciou Barbosa.
O conferencista explicou que a chamada “imunidade de rebanho” só funciona se os 5% não imunizados estiverem distribuídos aleatoriamente entre os demais 95% da população que receberam a vacina. “Se o grupo não imunizado estiver concentrado em um mesmo território, como acontece nas áreas mais pobres e periféricas, o índice de não vacinação neste local não será de 5%, mas de 50%, 70%, Uma população suscetível, capaz de ocasionar um surto, como aconteceu em Fortaleza, em 2013, com o sarampo. É preciso olhar a cobertura vacinal por bairros, distritos sanitários. Quando um surto de uma doença contagiosa acontece em um território específico, ele é um proxy do que provavelmente acontecerá em contextos semelhantes”, exemplificou.
Barbosa ressaltou que a redução da cobertura vacinal é um problema multifatorial, que nos últimos anos vem afetando diversos países. “Em cada realidade vamos encontrar diferentes causas que influenciam a hesitação em se vacinar. Algumas pesquisas mostram que essa tendência é mais intensa nos extratos mais ricos e mais pobres da população. No primeiro grupo, percebemos que há uma reduzida percepção do risco, apoiada por uma prática médica que não é baseada em evidências científicas”, afirmou o diretor-adjunto da OPAS, referindo-se ao entendimento falacioso que se uma família tem acesso a condições adequadas de moradia, alimentação, saúde, então não precisaria se vacinar.
“No outro extremo, temos as famílias pobres, lideradas por um único adulto que provê renda, na maioria das vezes, uma mulher que trabalha 7 dias por semana na economia informal. Se antigamente essas famílias viviam próximas a um posto de saúde e iam caminhando até ele para tomar vacina, hoje, com o crescimento das grandes cidades e o aumento das desigualdades, a distância geográfica é um empecilho. Outra dificuldade é fruto de uma conquista importante: o SUS disponibiliza mais de 10 vacinas no primeiro ano de vida e a grande maioria das mulheres pobres chefes de família não consegue ir tantas vezes ao posto de saúde longe de casa, que só funciona em horário comercial”, continuou o conferencista.
“O livro é um convite ao debate, à reflexão e à mobilização da sociedade para a defesa da vacina e da vacinação. O mundo mudou e se não adotarmos globalmente e em cada país novas estratégias de imunização não superaremos o problema da baixa cobertura vacinal. Esse compromisso deve ser assumido pelos tomadores de decisão, que devem alocar recursos suficientes para os programas de imunizações, e por toda a sociedade, desde os profissionais de saúde até as famílias”, concluiu Barbosa.
Covid-19
O diretor-adjunto da OPAS informou que a pandemia de Covid-19 produziu um impacto importante sobre os programas de imunização. “O Brasil registrou uma redução de 24% no número de crianças imunizadas com a terceira dose da vacina tríplice bacteriana (DTP), um indicador clássico de cobertura vacinal, no primeiro semestre de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. Precisaremos de estratégias especiais para ir atrás dessas crianças que não foram imunizadas. Simplesmente reabrir os serviços e aguardar o comparecimento da população não vai funcionar”, alertou Barbosa.
Em relação à vacina contra a Covid-19, o conferencista lembrou que, apesar de ter uma plataforma de produção única na América Latina, o Brasil compartilha com os demais países do continente vulnerabilidades importantes em relação a insumos para a saúde. “Durante a pandemia todos os países latinoamericanos enfrentaram problemas com a disponibilidade de luvas, um produto que não é complicado de ser produzido, pois a maior parte desse insumo é importada. A mesma lógica vale para respiradores, vacinas e medicamentos. É necessária uma revisão dos modelos de desenvolvimento, pautado pela cooperação internacional, com um plano estratégico de longo prazo. Estamos trabalhando nisso junto com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal)”, adiantou o diretor-adjunto da OPAS.
A infectologista Valdiléa Veloso, diretora do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz), e a ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), Carla Domingues, encerraram o evento. “Se antes da pandemia de Covid-19 este livro já era muito oportuno, hoje ele se torna ainda mais fundamental. É referência e leitura obrigatória para todos que trabalham com Saúde Pública, infectologistas, pediatras, pois reúne tudo o que precisamos conhecer para compreender a complexidade das vacinas e da vacinação”, reconheceu Valdiléa.
A coordenadora do INI/Fiocruz evidenciou as disputas e desigualdades no campo da produção de vacinas. “Desenvolver a capacidade produtiva nacional é prioritário. A corrida pela vacina contra a Covid-19 nos mostra que os países desenvolvidos rapidamente se organizam para adquirir e administrar o imunizante, enquanto os países em desenvolvimento terão muitas dificuldades e poderão levar anos para alcançar uma cobertura vacinal que tenha impacto no controle da pandemia. Falamos da vacina da Pfizer, da Moderna, da AstraZeneca, da Janssen; vacinas da indústria. E o investimento dos Estados em Ciência, Tecnologia e Inovação, imprescindível para que a indústria possa aplicar os resultados das pesquisas na produção dessas vacinas, é invisibilizado. Precisamos dar mais visibilidade a essa dinâmica; é preciso que a sociedade pressione os governos para o investimento em Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação”, afirmou a pesquisadora.
Para a ex-coordenadora do PNI, é preciso repensar o modelo de vacinação implementado na década 1970. “Em 2020, 30% das salas de vacinação do Brasil não são informatizadas. Sem investimento em infraestrutura, tecnologia e força de trabalho não conseguiremos identificar as micropopulações que não estão sendo imunizadas e representam bolsões suscetíveis à ocorrência de surtos e à eclosão muita rápida de epidemias. O Brasil tem uma posição privilegiada na América Latina, com dois grandes produtores nacionais de vacinas, mas ainda dependemos de transferência de tecnologia de outros países. Não temos vacina para dengue, zika, malária, esquistossomose, doenças que são importantes em nossa região e que não serão alvo de investimento de países desenvolvidos. Este modelo está ultrapassado e essa questão é muito bem retratada no livro, que é é brilhante e traz reflexões pertinentes sobre a política nacional de imunização e a melhoria do parque tecnológico em nosso país”, concluiu Carla.