Cidadania, participação social e desenvolvimento territorial

Maior participação dos cidadãos na vida pública, circulação mais intensa de informações, transparência do processo político, intensificação do debate público. Para a pesquisadora Vera Schattan Coelho, coordenadora do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), este caminho deve contribuir para o desenvolvimento territorial e a melhoria das condições de vida da população. Nesta entrevista, a pesquisadora da Universidade Federal do ABC analisa os processos de controle social no Sistema Único de Saúde (SUS) e discute suas implicações para o desenvolvimento territorial. Vera destaca que a participação social alcança melhores resultados quando integra sociedade civil mobilizada, gestores comprometidos com o projeto participativo e instituições que facilitam a comunicação entre os participantes. “Novos equipamentos de saúde chegam mais rapidamente às regiões onde há aliança entre os conselhos e os gestores de saúde locais”, exemplifica.

Quais as implicações entre controle social e desenvolvimento territorial? 

A aposta na participação social associa a inclusão de um amplo espectro de cidadãos na vida pública à circulação mais intensa de informações, à maior transparência do processo político e à intensificação do debate público. As dinâmicas participativas ampliam, ao menos potencialmente, as chances de que os usuários do SUS, em especial os mais pobres e os que vivem em áreas de difícil acesso, tenham oportunidade de articular seus pontos de vista, tornando-os mais claros e compreensíveis para os atores estatais. Esse processo pode ajudar a iluminar especificidades locais, o que deve contribuir para a definição de políticas mais viáveis e justas, com repercussões positivas sobre a redução da pobreza e da desigualdade e, mais amplamente, sobre os processos de desenvolvimento.

Embora atraente, tal proposta deixa algumas questões em aberto. Uma delas é que  a necessidade não cria, por si, capacidade de expressão ou pressão. É difícil pensar que os efeitos positivos da participação social possam acontecer sem que também ocorram processos paralelos, envolvendo a mobilização política dos usuários do SUS e a capacitação dos gestores para a gestão dos processos participativos. Outra questão, a sociedade civil é muito heterogênea e devemos ser cautelosos ao apostar na relação entre a inclusão de movimentos e organizações de representação de interesses e o estabelecimento de formas de coordenação capazes de fazer convergir ganhos individuais, sociais no sentido do desenvolvimento.

Como a senhora avalia o processo histórico envolvendo controle social e desenvolvimento territorial, no contexto do SUS? Quais as perspectivas para as próximas décadas?

É fundamental destacar a defesa do direito à saúde feita nos últimos vinte anos nos conselhos e conferências de saúde. Essa atuação foi importante para garantir tanto  a vitalidade e universalidade do SUS, nos anos 1990, quando se defendia a focalização das políticas sociais, quanto recursos crescentes para o sistema público de saúde ao longo dos anos 2000. Também precisamos reconhecer que, no contexto do SUS, a participação e o controle social têm sido exercidos, com raras exceções, em uma perspectiva setorial. É claro que isso não significa que nos fóruns participativos não se discutam questões relativas, por exemplo, a saneamento, nutrição, infraestrutura urbana ou segurança. Porém, o centro da discussão é, na maioria das vezes, o próprio SUS e não os caminhos para se alcançar maior coordenação dos atores sociais e políticos em torno de investimentos públicos voltados para o desenvolvimento territorial.

Diversos avanços já foram documentados em relação ao controle social no SUS, dentre eles, a inclusão no processo político de organizações que representam grupos marginalizados, a ampliação do diálogo entre usuários e gestores públicos e, talvez o mais importante, o fortalecimento e a permanência no debate público da noção de saúde como um direito. Mais recentemente, cresceu a percepção da importância da condução de processos de regionalização do SUS, mas, novamente, o foco é a regionalização do sistema e não o desenvolvimento territorial.  De qualquer forma, este  investimento crescente em relação à regionalização e ao amadurecimento da experiência de governança regional poderão servir como facilitadores para a implantação de práticas intersetoriais de governança que venham a ter impactos positivos sobre o desenvolvimento regional.

Como o controle social do SUS, exercido a partir dos conselhos de saúde e de movimentos sociais, vem impactando a oferta e a distribuição de serviços de saúde no Brasil?

Alguns exemplos mostram como se dá, cotidianamente, o envolvimento dos conselhos nas políticas de saúde. Discute-se a legitimidade de certas políticas, como o envolvimento ou não das Organizações Sociais de Saúde (OSS) no SUS. Discute-se a promoção de justiça distributiva, fomentando-se programas que promovam a saúde da população negra ou a defesa do próprio SUS como um sistema universal e equitativo. E discute-se, também, como ampliar a eficácia administrativa por meio, por exemplo, de um maior controle sobre a presença de médicos no local de trabalho ou da redução das taxas de absenteísmo dos pacientes. Tudo isso aponta para a democratização das políticas de saúde.

Da perspectiva dos impactos distributivos, um estudo exploratório que realizamos em regiões pobres e periféricas da cidade de São Paulo mostrou que novos equipamentos de saúde chegam mais rapidamente às regiões onde há aliança entre os conselhos e os gestores de saúde locais. Isto sugere que os custos envolvidos na participação estão sendo recompensados. Afinal, o fato das demandas encaminhadas contarem com o apoio tanto dos gestores quanto dos conselheiros reforçou seu peso político e contribuiu para que os equipamentos de saúde chegassem primeiro a essas regiões. Estudos mais rigorosos sobre a relação entre participação social e mudanças na distribuição de serviços que tenham contribuído para a redução das desigualdades em saúde são, no entanto, muito difíceis de implementar.

Que políticas públicas poderiam ser tomadas no presente para, em médio e longo prazo, incrementar a gestão participativa do SUS?

Estudos mostram que a participação social alcança melhores resultados em contextos onde há uma combinação de gestores que apoiam o processo, sociedade civil mobilizada e características organizacionais que facilitam o enfrentamento das assimetrias entre os participantes e as tomadas de decisões. Isto significa que, nas situações em que o governo não endossar o projeto participativo, teremos mais dificuldades em fazê-lo avançar – mesmo onde se conta com um histórico de participação e mobilização social. Nessas situações, é provável que os movimentos sociais se posicionem de forma mais ativa no terreno da crítica e da reivindicação do que da colaboração.

Fatores que podem contribuir para o aprofundamento do projeto participativo são a divulgação mais ampla dos espaços de participação pela mídia, a introdução da noção do direito à participação no currículo escolar, assim como um trabalho mais efetivo de sistematização, divulgação e apropriação das contribuições produzidas nos processos participativos. A administração descentralizada e intersetorial pode contribuir para lidarmos com o que hoje reconhecemos como um excesso de instituições participativas que, em muitos casos, estão esvaziadas. A dúvida que permanece é sob que condições se conseguirá manter a atenção para com as especificidades de áreas tão diversas quanto, por exemplo, saúde, educação e habitação, e, simultaneamente enfocar estratégias holísticas de desenvolvimento.

Como a realização de estudos de futuro, como os desenvolvidos pela rede Brasil Saúde Amanhã colaboram com os processos de planejamento e avaliação de políticas públicas?

Um dos grandes desafios para os que têm interesse em fazer avançar políticas de saúde baseadas em evidências é identificar associações robustas entre a expansão de determinadas práticas de gestão e de oferta de serviços públicos de saúde e a melhoria dos indicadores de saúde da população e a redução das desigualdades em saúde. Uma rede de pesquisa do porte e qualidade do Projeto Brasil Saúde Amanhã, que analisa tendências demográficas e epidemiológicas da população, enfoca os determinantes sociais da saúde e se detêm em variados aspectos da gestão do SUS, representa, sem dúvida, a possibilidade de ampliarmos de forma importante o acervo de evidências produzidas a partir de estudos realizados em todo o território nacional. À medida em que esses resultados nutrem um debate aberto e democrático sobre quais devem ser as prioridades e como as políticas devem ser implementadas, ampliam-se as possibilidades de alcançarmos melhores indicadores de saúde.

Bel Levy
Saúde Amanhã
30/05/2016