Ciência made in Brasil


O ano era 1985. Trabalhadores rurais, crianças e turistas — as principais vítimas de acidentes com animais peçonhentos — sofriam com a falta de soro antiofídico (contra o veneno de cobra) nos postos de saúde e hospitais de todo o país. O problema chamou a atenção da imprensa, que relatava casos de pessoas que ficavam sem assistência, sofriam amputações ou até chegavam à morte pela falta do produto nas unidades de saúde. Para suprir a ausência desse insumo, o governo brasileiro iniciou a importação emergencial do soro, mas esbarrou em outro impasse: os antígenos produzidos a partir do veneno de cobras existentes em outros países não se adaptavam bem às espécies brasileiras.A origem deste problema de saúde pública estava no fechamento de uma única empresa, a Syntex do Brasil, responsável por boa parte da produção de soro antiofídico no país e de outros imunobiológicos. Depois que o Ministério da Saúde apontou irregularidades em amostras da vacina DPT (a chamada “tríplice bacteriana”, que previne contra difteria, tétano e coqueluche), fabricadas pela empresa, a multinacional simplesmente fechou as portas e interrompeu a produção de vacinas, soros e outros antígenos — com prejuízo para a saúde da população, que ficou sem acesso a um insumo essencial para salvar as vítimas de picadas de cobras.O episódio revelou que não havia investimento governamental suficiente para suprir a necessidade desses produtos, o que gerava dependência em relação ao mercado privado, relembra Akira Homma, presidente do Conselho Político e Estratégico de Bio-Manguinhos (unidade produtora de imunobiológicos da Fiocruz). A saída encontrada pelo governo brasileiro na época foi investir em um programa para tornar o Brasil independente da importação de soros e vacinas, o Pasni (Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos).

Esta ocorrência, também narrada pelo historiador Carlos Fidelis Ponte, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), no livro “Inovação em Saúde” (Editora Fiocruz), mostra que sem investimentos públicos não há desenvolvimento científico e tecnológico em saúde, que garantem qualidade de vida e melhorias para toda a população. “Esse é um tema absolutamente importante para o presente e, sobretudo, para o futuro do país, e tem que ser uma política de Estado de longo prazo, pois nenhuma atividade de produção ou desenvolvimento tecnológico acontece do dia para a noite”, defende Akira.

As perdas de investimentos podem colocar a saúde brasileira de volta à posição de “refém” na área de inovação e do complexo econômico e industrial, na contramão da busca pela autonomia científica, apontam os especialistas ouvidos por Radis. No fim de março, o corte anunciado para o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) foi de R$ 2,2 bilhões, correspondente a 44% das verbas da área — com isso, o orçamento do setor será o mais baixo dos últimos 12 anos, segundo a revista britânica Nature, uma das mais importantes publicações da área científica no mundo. O ajuste se soma a outras medidas, como a PEC do Teto dos Gastos Públicos, aprovada no fim de 2016, que congelou por 20 anos os investimentos governamentais: segundo a nova regra, o governo poderá aplicar somente o valor gasto no ano anterior, corrigido pela inflação.

“As perspectivas são alarmantes”, afirma Laís Silveira Costa, vice-líder do Grupo de Pesquisa em Inovação em Saúde (GIS) da Fiocruz e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz). Para ela, a reversão na trajetória de investimentos deve gerar danos para o chamado complexo econômico e industrial da saúde. “O corte de gastos torna perene uma condição de dependência e injustiça, e nos mantém atados a um sistema produtivo e de distribuição que favorece o consumo de poucos em detrimento da atenção à necessidade da maioria”, destaca.

Em tempos de crise, destinar recursos para desenvolver a área industrial da saúde não é prejuízo, mas oportunidade, aponta o pesquisador Carlos Gadelha, coordenador do GIS e das Ações de Prospecção da Fiocruz. Segundo ele, a retomada do investimento e do desenvolvimento industrial no Brasil tem na saúde uma de suas principais “alavancas”. “Temos como primeiro desafio conferir condições estruturais para garantir a saúde como direito integral, equânime e universal, que somente pode ser atingido com uma base produtiva e de inovação forte”, constata. Na avaliação dos especialistas consultados por Radis, as perdas de investimentos geram impacto na área de produção e desenvolvimento de inovações em saúde. Também trazem à tona os riscos da dependência tecnológica e produtiva e seus reflexos para a saúde da população.

Interesses em jogo
O desenvolvimento de um novo medicamento leva tempo e dinheiro: pode exigir de 10 a 15 anos de pesquisa e envolver um investimento superior a US$ 1 bilhão, segundo dados da indústria americana, citados no livro “A dinâmica do sistema produtivo da saúde”, escrito por um grupo de pesquisadores liderados por Carlos Gadelha. Para Laís Costa, uma das coautoras da obra, o desenvolvimento tecnológico em saúde é crucial para a autonomia da ciência, para a economia e para a soberania do sistema nacional de saúde. “No Brasil, infelizmente, não temos um parque produtivo da saúde que seja competitivo, inovador”, analisa. Segundo ela, os riscos sociais são inúmeros, pois não existe autonomia para desenvolver trajetórias tecnológicas que respondam às necessidades da população brasileira.O chamado “complexo econômico e industrial da saúde” é formado por um conjunto de setores com atividades produtivas, que envolvem desde a pesquisa e o desenvolvimento de inovações até a prestação de serviços. Nele estão incluídas as indústrias farmacêuticas, de vacinas, de hemoderivados e reagentes para diagnóstico, as fábricas de equipamentos e materiais (como órteses e próteses) e os prestadores de serviços. Para Laís, é preciso um olhar sistêmico sobre esse setor importante da economia brasileira, levando em conta os interesses a que ele atende e quais seus possíveis benefícios para a sociedade. “Infelizmente, o que se observa hoje é a concentração da grande maioria dos recursos de pesquisa e desenvolvimento em saúde para atender a necessidade de uma minoria da população mundial”, reflete.A inovação em saúde não é neutra, adverte a pesquisadora. De acordo com os interesses envolvidos, ela pode beneficiar o conjunto da população ou apenas um grupo minoritário, atraído pelo lucro com a venda de produtos e serviços. “Países que dominam estas tecnologias ditam as trajetórias tecnológicas a serem adotadas”, explica. Ela cita o exemplo de inovações extremamente caras e sem efetividade comprovada, que servem apenas ao interesse mercadológico. O mesmo acontece com a utilização de recursos diagnósticos em situações em que bastaria um exame clínico. “O uso de tecnologias cuja necessidade ou benefício não seja evidente tende a ‘raptar’ recursos de outros pontos do sistema, prejudicando a população e acentuando as desigualdades”, acrescenta. Por isso, é essencial que a política de ciência, tecnologia e inovação em saúde esteja a serviço do SUS e da promoção da saúde e da qualidade de vida da população.

Superar a dependência
A produção de vacinas é um dos setores chaves no complexo industrial da saúde. “O Programa Nacional de Imunização (PNI) é um dos mais completos do mundo, não tem nenhum outro país em desenvolvimento que tenha um programa como esse”, afirma Akira Homma, presidente do Conselho de Bio-Manguinhos, que em 2015 foi responsável por cerca de um terço do mercado público nacional de vacinas. O Instituto de Imunobiológicos da Fiocruz e outros laboratórios públicos, como o Instituto Butantã em São Paulo, são responsáveis pela produção de vacinas distribuídas gratuitamente para a população, de acordo com o calendário oficial de vacinação, estabelecido pelo Ministério da Saúde. Porém, desenvolver e produzir esses produtos é uma atividade cada vez mais cara. Em um mercado que se torna mais competitivo, vale uma regra: quem não cresce pode desaparecer. “Quem não acompanhar o desenvolvimento científico e tecnológico e incorporar produtos novos, está fadado a fechar suas portas”, completa Akira.De acordo com o pesquisador, a produção dos chamados imunobiológicos é uma atividade multifacetada, que tem vários componentes e etapas, e deve ser planejada a longo prazo. “A produção de imunobiológicos vai se tornando cada vez mais cara, mais onerosa”, constata. O principal desafio nessa área é dotar o país de condições de suprir as necessidades de saúde da população sem sofrer com as inconstâncias do mercado. Para isso, a meta é desenvolver produtos autóctones (isto é, pesquisados e produzidos exclusivamente com tecnologia nacional). “Nós queremos ter produtos autóctones, desenvolvidos inteiramente no país. Mas não tivemos nenhum produto assim para uso humano”, afirma Akira, ao citar o caso da vacina contra a febre manqueira, desenvolvida por Alcides Godoi, que salvou a criação de gado brasileiro no início do século 20. “De lá para cá nós participamos do desenvolvimento produtivo, mas não tivemos uma vacina que nós tivéssemos desenvolvido inteiramente sozinhos”, acrescenta.A explicação para esse atraso está no fato de que o investimento na área de ciência e tecnologia é ainda “muito pequeno”, segundo o pesquisador. “O investimento está aquém das necessidades, precisaria multiplicar por 10, 20, talvez 100 vezes em relação ao se que realiza hoje para pensar em ter um produto legitimamente autóctone daqui a dez anos”, afirma Akira. Ele ainda destaca que essa é uma atividade de retorno demorado, que exige investimentos de longo prazo, por isso não pode ficar restrita à iniciativa privada, que tem outros tipos de interesses além do benefício social. “Essa atividade funciona com acúmulo de conhecimentos, formação de massa crítica, de infraestrutura para essa finalidade. Precisa realmente de grandes investimentos para se pensar em um futuro promissor”, considera.

Visão de desenvolvimento
“O bem-estar social não é problema, é solução para um projeto de desenvolvimento do país, porque permite gerar renda, emprego e inovação tecnológica”. A fala é de Carlos Gadelha, que defende a ideia de que as políticas para o complexo industrial da saúde devem estar ancoradas na garantia do direito à saúde. Para ele, os investimentos nesse setor são essenciais para ajudar o Brasil a sair da crise e formular um novo projeto de desenvolvimento que tenha o bem-estar social como “norte”. “Do ponto de vista da ciência e tecnologia, a gente tem que sair de uma ótica que considere o conhecimento como despesa, para outra que enxergue como o principal investimento do país”, afirma, ao destacar que essa é uma estratégia fundamental para a inserção do Brasil no contexto global.Segundo Gadelha, é justamente no contexto de crise que se torna essencial ter um projeto de país. Ele aponta os três principais desafios estruturais para a área da saúde. “O primeiro desafio é a preservação dos direitos sociais e a consolidação e o aprofundamento do SUS como pilar essencial da cidadania”, constata. Já o segundo envolve o fortalecimento da área de ciência, tecnologia e inovação e do sistema produtivo e industrial da saúde, para que os conhecimentos gerados nesse campo possam se transformar em riqueza para a sociedade brasileira. Por fim, o terceiro desafio é a questão do desenvolvimento sustentável. “Hoje o Estado é organizado a atender apenas os objetivos do ajuste ou a objetivos setoriais. O que a gente está propondo é substituir a lógica setorial pela lógica dos desafios da sociedade brasileira”, pondera.Uma das questões estratégicas apontadas é a recuperação da participação da indústria na economia brasileira. “O peso da indústria na economia nacional está fortemente ameaçado. Nós não podemos ser um país consumidor de tecnologias e produtos de alto valor agregado”, analisa Gadelha, ao enfatizar que o Brasil corre o risco de voltar a ser um país exclusivamente primário exportador (voltado para a exportação de produtos agrícolas e extrativistas). Segundo ele, enquanto países que estão em crescimento acelerado, como a China, investem em torno de 40% do PIB na área industrial, o investimento brasileiro está em um patamar em torno de 15%. “O sistema industrial e produtivo brasileiro está no risco de cair na armadilha do subdesenvolvimento, tornando o país estruturalmente periférico”, destaca. Para o pesquisador, o que está em jogo é o próprio modelo de desenvolvimento brasileiro. Ele explica que o Brasil viveu um período agrário exportador até a década de 1930, que foi substituído por um modelo de desenvolvimento industrial acelerado até a década de 1980, mas com forte exclusão social e baixa preocupação em relação à questão ambiental. “A partir dos anos 2000, a gente retoma uma agenda de desenvolvimento ainda pouco consolidada, em que pela primeira vez se inclui a dimensão social nessa estratégia”, considera, ao afirmar que as instituições públicas têm o papel de construir um novo modelo que tenha o social como fio condutor.

E qual seria o papel da saúde nesse projeto? Para Gadelha, os desafios da sociedade brasileira — que incluem questões de mobilidade, sustentabilidade e a garantia de educação e saúde — fazem parte de uma agenda ampliada da saúde como qualidade de vida. “O desafio do complexo econômico e industrial da saúde é como nós podemos ter um padrão científico e tecnológico de inovação que leve ao bem estar e não à segmentação entre quem pode e quem não pode pagar”, pontua. “Somente com instituições públicas e um Estado forte e comprometido com a sociedade, é possível que a agenda social presida a agenda do desenvolvimento econômico e industrial”, completa.

Olhar para o futuro
Para pensar o futuro do Brasil na área de ciência, tecnologia e inovação em saúde, é fundamental falar de investimentos em educação: essa é a visão de alguém que há quatro décadas trabalha com o conhecimento de ponta na área de saúde. Akira Homma foi considerado pela organização internacional Vaccination como uma das 50 pessoas mais influentes na indústria de vacinas no mundo (Radis 167). “Somente com investimento forte, contínuo, com uma política de Estado na educação, em todos os níveis, desde o mais básico até a universidade e pós-graduação, será possível ter o país que a gente quer”, defende. Quando se fala em crise, a experiência de outros países do mundo aponta que a solução veio de investimentos em educação e não de cortes, defende.Para a área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) em saúde, os recursos públicos são essenciais para não deixar a garantia dos direitos da população na mão do mercado, reflete Akira. “Eu não sou contra laboratório privado, mas é importante que se saliente que o laboratório privado vai decidir sempre à luz da economia, da questão de sua sobrevivência. Se eles não ganham o suficiente para sobreviver, eles vão fechar”, analisa, ao relembrar o caso da Syntex do Brasil ocorrido em meados dos anos 1980. Para ele, o setor público cumpre um papel estratégico em suprir os imunobiológicos para os programas do Ministério da Saúde. “As vacinas produzidas no Brasil atendem os padrões internacionais de qualidade e cumprem com as demandas do PNI, com escala de produção”, explica, e acrescenta que esse é um requisito necessário para se obter um custo de operação suficientemente baixo a fim de competir em preço com os produtos oferecidos no mercado internacional.Akira foi coordenador do Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni), entre 1990 e 1991, que investiu na modernização dos laboratórios públicos responsáveis pela produção de vacinas e soros. Segundo ele, além de atender à demanda e evitar a falta desses produtos, outra função do setor público é a regulação de preços. Isso significa que a produção nacional em laboratórios públicos, como a Fiocruz e o Butantã, ajuda a controlar os preços desses insumos no mercado e representa a economia de recursos para os cofres públicos. Além das vacinas e soros, a indústria brasileira também trabalha na produção de kits de diagnóstico, como o kit NAT, capaz de diagnosticar no sangue transfundido a presença dos vírus da aids e das hepatites B e C. Desenvolvido por meio de uma parceria entre Fiocruz, UFRJ, Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP) e alguns hemocentros, este kit já teve 4 milhões de unidades fornecidas desde seu lançamento, em 2010.

Outra função estratégica é a transferência de tecnologia, que ocorre quando um acordo possibilita que algum recurso ou produto desenvolvido em outro país seja incorporado pela indústria nacional. “A transferência de tecnologia também tem ajudado a gente a elevar o nosso grau de capacitação científica e tecnológica”, afirma Akira. Segundo ele, o Brasil continua apostando no desenvolvimento autóctone, mas na medida em que aparecem novos produtos, não dá para esperar. “A sociedade exige um produto para ontem”, enfatiza. Na área farmacêutica, o Ministério da Saúde conta atualmente com 86 parcerias de desenvolvimento produtivo (PDPs), envolvendo 18 laboratórios públicos e 43 privados, referentes a 88 medicamentos, 4 vacinas e 13 produtos da área da saúde, de acordo com dados de janeiro de 2017. Um exemplo recente foi o acordo assinado entre Bio-Manguinhos e a empresa britânica GlaxoSmithKline (GSK), em 2012, para a produção da vacina contra a catapora (varicela), que foi acrescentada à dose da tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) e passou a integrar o calendário básico de vacinação.

Planejar a longo prazo, mas estar pronto para agir em situações emergenciais: esse é o desafio de uma indústria que deve responder de forma rápida às necessidades epidemiológicas da população. Foi o que aconteceu com o surto de febre amarela, em 2017. “De uma demanda normal de 20 milhões de doses de vacina por ano, só nos três primeiros meses nós já fornecemos mais de 25 milhões de doses”, destaca Akira. Com isso, ele considera que será possível, de forma planejada e escalonada, cumprir a vacinação de todas as áreas que foram incluídas na expansão da cobertura de vacinação, a partir do surto ocorrido em 2017 (Radis 174).

O cenário atual é grave porque aponta para o aumento da dependência tecnológica e a adoção de políticas que afetam principalmente os mais pobres, analisa Laís Costa. Para ela, os cortes intensificam a marginalização de grande parte da população e selecionam quem deve ou não ter acesso a inovações e tratamentos de saúde a partir dos critérios de quem pode pagar e não das condições clínicas. “Os desafios para a área de inovações em saúde são enormes e, infelizmente, o atual governo federal evidencia seu descaso com a ciência e tecnologia”, aponta. Na sua visão, os cortes ameaçam os ganhos decorrentes das políticas adotadas nos últimos anos, como a capacitação tecnológica, o aumento da competência dos produtos públicos e a destinação de recursos para fomentar a produção.

Presente ameaçado
Porém, de acordo com a pesquisadora, mesmo com uma trajetória de aumento nos investimentos no setor produtivo da saúde, o Brasil não conseguiu alcançar a escala necessária para superar a dependência tecnológica — o que se agrava com os cortes. “Fomos capazes de tirar do papel e alavancar iniciativas relevantes, mas teríamos que dar continuidade, planejar e sustentar políticas industrias e de inovação voltadas para o SUS”, afirma. Segundo ela, o volume de recursos aportados para o desenvolvimento tecnológico na área de saúde tem sido claramente insuficiente. As políticas de saúde podem ficar reféns de cadeias de valor ditadas pelo mercado, com riscos sociais para toda a população. “Ficamos vulneráveis quando nos deparamos com cenários de crise econômica ou mudanças nas políticas cambiais, ameaçando a continuidade de tratamentos e ações de promoção e prevenção”, explica Laís. Para ela, a dependência tecnológica está ligada à perda de alternativas para a implementação de políticas de saúde efetivas.No horizonte, o que está sob ameaça é a garantia do direito à saúde, afirmado pela Constituição de 1988. “Se não tivermos autonomia e capacidade para formular soluções criativas voltadas para resgatar da vulnerabilidade uma população tradicionalmente marginalizada, o projeto civilizatório instituído na Constituição Federal corre o risco de falir de vez”, analisa. Na sua avaliação, a perda de investimentos só agrava um cenário de dependência. “O corte orçamentário proposto pelo governo sinaliza uma decisão política de abandonar o projeto de um sistema universal e de buscar inovações que possam ser compartilhadas pelo conjunto da população”, destaca. Segundo ela, essa postura política faz parte de uma visão que coloca o Brasil de forma subordinada na economia global, atendendo aos interesses dos grandes conglomerados financeiros.A saúde impacta positivamente em todo o parque produtivo do país, por isso deve receber investimentos e não cortes, concordam Gadelha, Laís e Akira. “As inovações em saúde podem melhorar os serviços do SUS e beneficiar a população”, afirma Laís. Ela cita tanto a necessidade de enfrentar os desafios estruturais que ameaçam a saúde pública quanto a viabilização de uma agenda de curto prazo, que inclui a disponibilidade de recursos para tratamentos oncológicos, terapias antirretrovirais, imunização da população e desenvolvimento de serviços diagnósticos. Para Gadelha, a promoção do bem-estar social deve ser considerada uma alavanca, um fator propulsor e uma oportunidade para a retomada do desenvolvimento do país. Segundo ele, o Estado, por meio de suas instituições públicas, como a Fiocruz, tem papel estratégico nesse contexto. “O direcionamento pelo Estado é a única forma de garantir que o sistema produtivo e tecnológico esteja a serviço do SUS e da sociedade brasileira”, afirma. Segundo ele, o desenvolvimento sustentável deve ser encarado como uma premissa estratégica para as atividades produtivas em saúde, envolvendo as dimensões econômica, social e ambiental. “Somente promovendo educação de qualidade, investindo em ciência e tecnologia de ponta é que vamos ter um país com futuro, com tecnologias a serviço não só da economia, mas da população em geral”, completa Akira.

Cérebros atados
A ciência brasileira tem, em seu horizonte, um corte de investimentos que coloca a área com o orçamento mais baixo dos últimos 12 anos. Em carta enviada ao ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, em 27/03, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Associação Brasileira de Ciências (ABC) afirmam que qualquer contingenciamento de verbas não atende às necessidades do país e prejudica o desenvolvimento almejado para a nação brasileira. De acordo com a revista científica Nature (3/4), a redução em 44% no orçamento federal de ciência, tecnologia e inovações deixou os cientistas brasileiros “horrorizados”. Ainda de acordo com a revista, as perdas fazem parte de um conjunto de medidas que feriram a autonomia da ciência brasileira nos últimos anos. Tais mudanças incluem cortes de recursos desde 2014 e a fusão do ministério de Ciência e Tecnologia com a área de comunicações no início do governo Temer, em maio de 2016. Todos esses assuntos estiveram em pauta durante a Marcha pela Ciência, uma mobilização de cientistas e apoiadores ocorrida em 22 de abril, tanto no Brasil quanto em outros países do mundo (Radis 176).“Qualquer nação que não invista nessa área está sujeita a uma nova condição colonial, porque vai depender da ciência e tecnologia produzida por outras nações”, afirmou em entrevista à Radis a presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Tamara Naiz. De acordo com ela, os cortes afetam a ciência e a educação nacionais e interrompem um ciclo virtuoso de investimentos na ciência brasileira, presente até 2015, em que houve aumento de financiamento e a expansão do sistema nacional de pós-graduação, do número de bolsas e da produção de ciência, tecnologia e inovação. “Esses aumentos levaram à melhoria da posição do Brasil na produção científica internacional”, aponta. Segundo Tamara, os cortes são fruto da instabilidade política que o Brasil atravessa, mas afetam a continuidade das pesquisas científicas brasileiras, desde o custeio do dia a dia até o pagamento de bolsas. “Não é razoável que o governo contingencie quase metade do orçamento da ciência brasileira”, critica. (LFS)Fonte: Revista Radis