Saúde sem dívida e sem mercado

As estratégias para o desenvolvimento de um SUS mais igualitário, universal e sustentável no Brasil foram discutidas no segundo dia do seminário Saúde sem dívida e sem mercado, em 28/6/2017. Realizado a partir de uma parceria entre o Centro de Estudos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ceensp/Ensp/Fiocruz) e o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), o evento reuniu no auditório térreo da Ensp a pesquisadora Eleonor Conill, da UFSC e do Observatório Ibero-Americano de Políticas e Sistemas de Saúde (OIAPSS) e o economista Francisco Funcia, assessor do Conselho Nacional de Saúde para orçamento do SUS, consultor da FGV e professor da USCS, na mesa Correlação de forças e o SUS sem dívida e sem mercado.

Segundo Eleonor, observa-se na história dos sistemas nacionais de saúde um movimento pendular, que varia conforme a conjuntura econômica e política da sociedade. No entanto, de acordo com a pesquisadora, todas as trajetórias desses sistemas convergem, apesar das particularidades de cada sociedade, para uma problemática comum relacionada à gestão, aos problemas de trabalho, à integração da clínica geral com atenção especializada. “Nos momentos de crise, isto é, quando o pêndulo está para os ajustes fiscais, os discursos de universalização, base territorial, redes integradas e sustentabilidade desaparecem”, observa a pesquisadora.

O principal entrave na construção desse sistema, segundo a pesquisadora, é a transformação da saúde em mercadoria. “Hoje há uma forte pressão do segmento econômico, em sua acumulação não só industrial, mas também financeira, sobre o setor da saúde, que é de difícil regulação por estar relacionado às questões da vida, da ética e do sofrimento humano”, diz.

A pesquisadora afirma que, no Brasil, há uma série de “arranjos perversos” que dificultam o processo de legitimação do SUS. “No Brasil, temos cobertura universal duplicada [pública e privada] e desigual. Em uma sociedade com alta concentração de renda, a solidariedade necessária para a elaboração de um sistema mais igual é quebrada. Talvez seja um dos sistemas mais complexos de se regular”, analisa Eleonor, destacando que o desenvolvimento do SUS ocorreu paralelamente ao crescimento do setor privado. “Ao mesmo tempo que se fez um discurso de universalização, cresceu o setor privado. Hoje, a maior parte dos médicos está no setor privado. Além disso, a evasão das classes médias também é um problema muito sério para a legitimação de qualquer sistema”, afirma.

“Existem muitos estudos que mostram que os sistemas públicos nacionais têm melhores indicadores”, diz Eleonor. “Eles têm problemas também, como as filas de espera para exames, burocratização. No entanto, as formas de privatização não se mostram melhores. São sistemas caros, descoordenados, fragmentados”.

A pesquisadora delimita dois possíveis cenários de construção de um SUS mais sustentável. No primeiro, seria necessário, em um nível macro, debruçar-se sobre o complexo produtivo da saúde e fomentar a construção de carreiras profissionais no SUS. “A nossa balança comercial em assistência farmacêutica é muito deficitária e o provimento emergencial mostrou-se insatisfatório”. Em um nível intermediário, observa Eleonor, é necessário ampliar a profissionalização da gestão do SUS e reduzir a rotatividade político-partidária dos funcionários. “Teríamos ainda que avançar na informatização, com a criação de cartão nacional, melhorar as repostas clinicas, investindo em uma melhor resolubilidade dos postos de saúde e melhor equipamento, além de repensar a divisão técnica em nível local”, elenca.

No outro cenário delineado pela pesquisadora, ocorreria, no SUS, uma separação entre provedor e prestador. “O SUS comprador de uma cobertura integral estimula e regula a competição, repassando a atribuição de eficiência ao mercado”, explica, alertando que, no entanto, trata-se de uma solução arriscada. “Pela natureza do Estado, isso pode ser um desastre de sustentabilidade para o país. Trouxe esse cenário por que precisamos encarar essa discussão”.

Para o economista Francisco Funcia, qualquer planejamento para o futuro dependeria de uma revisão das emendas constitucionais 86 e 95, que retiram dinheiro do SUS e da Seguridade Social. Segundo Francisco Funcia, o orçamento federal da saúde vem caindo. “A EC 95 fará com que, em 2036, se não for revogada, ao invés de União, estados e municípios gastarem R$ 240 bilhões em Saúde, vão gastar R$ 200 bilhões. Perdem-se, assim R$ 40 bilhões, isto é, cerca de 15%. Está havendo queda de recursos em meio ao crescimento de necessidades a serem atendidas”.

O pesquisador defende a necessidade de se entenderem as carências do sistema e pensar como seria feita a distribuição dos recursos. “Vamos lutar por mais dinheiro, mas para colocar esse dinheiro onde?”, indaga, destacando que para se pensar em financiamento para o futuro esbarra-se em questões estruturais. “A competência para tributar está centrada na União, assim como a receita disponível. Estados e municípios dependem excessivamente de transferências intragovernamentais, o que retira deles a governabilidade para fazer políticas públicas de maneira sustentável”, analisa. “Os municípios chegaram no limite da sua capacidade de financiamento com recursos próprios”.

Segundo Francisco Funcia, é importante comparar o orçamento da Saúde com o de outros setores para verificar as carências. “Na Saúde, gastam-se R$ 3,50 por habitante, por ano. Se compararmos com o setor de transporte público, por exemplo, observamos que a Saúde faz muito mais coisas, sem o aporte adicional de recursos que o transporte tem”. Para o pesquisador, trata-se de um “falso dilema” a ideia de que se precisar optar entre mais recursos ou melhoria na gestão. “Precisamos de mais recursos para aprimorar a gestão”, afirma.

Para o economista, é possível montar uma estratégia de financiamento para o SUS, fazendo um programa de crescimento gradual de alocação de recursos. “É possível fazer isso em um processo em que, gradativamente você prepara a capacidade de arrecadação, buscando-se fontes alternativas de financiamento”, explica.

“Não se pode ter medo de enfrentar o debate e de afirmar que se precisa de recursos”, afirma o economista. “Precisa-se aumentar os recursos e melhorar a gestão. São necessárias novas fontes de receitas, permanentes, estáveis e exclusivas”. Para Francisco, a luta em defesa do SUS não deve ser setorial. “Deve estar integrada à luta em defesa da seguridade social e dos direitos de cidadania inscritos na Constituição e no conceito de saúde ampliada da OMS”.

 

 

Fonte: CEE