A judicialização da saúde e suas aberrações

Por causa do crescente fenômeno da judicialização da saúde, que envolve o ambiente caótico por demandas que vão desde medicamentos até leitos em CTI, muito em razão da ineficiência do Estado atrelado aos interesses dos grandes empresários, os tribunais de Justiça vêm criando mecanismos que deem suporte as suas decisões, uma vez que, naturalmente, no meio jurídico não exista bagagem para tratar de questões sobre Sistema Único de Saúde (SUS) ou até mesmo saúde suplementar. Em um cenário onde observamos o Executivo e o Legislativo sem credibilidade, vemos o Judiciário assumir uma função à qual não está capacitado.

Partindo da hipótese da existência de uma máfia no setor saúde, que envolve desde profissionais médicos, empresários, propagandistas, advogados e indústrias farmacêuticas, é perceptível que, em certas situações, ocorre manipulação orquestrada por esses entes sobre o Judiciário, muito por conta da discrepância de conhecimento técnico envolvendo esses atores, de maneira a beneficiar o lucro da máfia em razão de pareceres emitidos pelos magistrados a favor de tratamentos e medicamentos onerosos, que poderiam ser substituídos por outros de baixo custo, gerando uso desnecessário de recursos financeiros. Observando essa desigualdade técnica e o crescente número de demandas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou as recomendações nº 31 e nº 36 que abordam a adoção de medidas que visem subsidiar os magistrados em relação às decisões envolvendo a assistência à saúde pública e suplementar, por meio da celebração de convênios com o objetivo de solucionar conflitos.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) conta com os núcleos de assessoria técnica (NATs) com o fim de auxiliar os magistrados nas decisões, por meio de parceria com a Secretaria de Estado de Saúde e a Defesa Civil, que disponibiliza profissionais da área de saúde, como médicos, farmacêuticos, enfermeiros, entre outros, visando dar suporte técnico aos magistrados nas decisões. A grande questão é o fato de o Estado ser o destinatário de grande parte das demandas, e disponibilizar profissionais que vão influenciar os juízes quanto às decisões favoráveis ou não a esse mesmo Estado. Contraditório, não? Será que os princípios da isonomia e da imparcialidade estão garantidos nessas circunstâncias? O núcleo representa os interesses da sociedade ou seria uma espécie de aparato do governo com o objetivo claro de redução do número de demandas por meio de pareceres tendenciosos?

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) criou o Núcleo de Apoio Técnico e Mediação (NAT), de maneira a encaminhar as demandas para especialistas da área que, em contrapartida, fazem análise prévia e emitem parecer técnico visando a resolução do conflito. O problema é que o NAT é composto por representantes de entidades como a Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) e ANS, e tais entidades representam os interesses das operadoras de planos, e a agência que, apesar de pertencer a administração pública, desde a criação, em 2000, pelo governo FHC, tem sua diretoria composta pelos empresários da saúde.

Estamos diante de nítido conflito de interesses, uma vez que as operadoras sendo rés nos processos não têm moralidade para analisar tais processos e emitir pareceres de maneira a condicionar a análise de pedidos de decisões liminares. O curioso é que a reforma da sala do TJ-SP, onde funciona o núcleo, foi financiada pelas entidades Abramge e FenaSaúde, no valor de R$ 70 mil. Haveria lobby por parte das empresas com o objetivo de queda no número de litigiosidade nessa questão? Segundo entidades de defesa do consumidor como o Idec, grande parte das demandas se dá por conta da negativa de cobertura pelas operadoras de planos de saúde.

É preciso salientar que estamos falando de vidas, e os trâmites judiciais são demorados e, se tratando de saúde, sabemos que cada fração de tempo é um risco. Uma forma de garantir a isonomia nas decisões judiciais seria por meio da participação de membros do Ministério e Defensoria Pública e especialistas representantes da sociedade civil organizada. Apesar do Art. 196 da Constituição Federal de 1988 ser bem claro, a saúde vem deixando de ser dever do Estado e se tornando direito do consumidor. Talvez a solução esteja em maior participação social na tomada de decisões e na luta em defesa de uma saúde pública de qualidade e contra a visão mercantil desta. Chega de descaso.

Portal CEBES, 23/10/2015